Livro de contos do argentino Júlio Cortázar, "Final de jogo" reúne 18 histórias de um dos grandes nomes da literatura contemporânea de língua espanhola.
O volume que tenho em casa traz o carimbo da saudosa Anhanguera, livraria do lado ímpar da rua do Rosário, no Centro de Jundiaí, e que por décadas abasteceu leitores da região. Foi comprado por meu pai, Sérgio, no longínquo 1971 e integrava sua biblioteca pra lá de eclética e variada (essas prateleiras bem fornidas serão tratadas em outra ocasião). A grafia antiga, em que afloram acentos ("jôgo", "êle", "môço", "dêsses", "sòzinhos"...), tem seu charme, mas o que conta mesmo é a multiplicidade de enredos e abordagens do escritor. Júlio Cortázar ficou conhecido por navegar numa literatura em que tempos e planos narrativos se embaralham, nos quais situações inusitadas aparecem ao lado de fatos corriqueiros, criando o que se convencionou chamar de "realismo mágico" ou "realismo fantástico". E esse inusitado aparece, por exemplo, no conto que abre a edição, "Continuidade dos parques", em que um leitor descansa em sua poltrona predileta, no final de um dia atarefado em sua fazenda, e continua a leitura de romance em que dois amantes tramam a morte do marido traído e... É melhor conferir a história. Ou ainda em "A porta incomunicável", em que um homem de negócios está em Montevidéu, hospedado num pequeno hotel da capital, e sua primeira noite é atormentada pelo misterioso e abafado choro vindo do quarto vizinho. Ou o impagável "As mênades", no qual um narrador esnobe chega ao teatro para uma noite de música; desdenha a miscelânea da programação escolhida pelo maestro, assim como sua atuação à frente da orquestra. Mas a cada intervalo, os aplausos do público são mais intensos, vindos de uma plateia ao que parece hipnotizada pelo magnetismo do regente. Tem ainda a apavorante "O ídolo das Cíclades", em que três arqueólogos amadores desenterram uma misteriosa estatueta num arquipélago grego. O poder do pequeno ídolo de pedra será testado por eles. Mas não só de estranhezas vivem as histórias de Cortázar. "Torito", por exemplo, narra as agruras de um boxeador acamado, prostado num quarto de hospital, recordando suas lutas e as trilhas que o levaram até ali. Ou o conto que dá nome ao livro, "Final de jogo", no qual três adolescentes descobrem o fascínio e as dores que um amor pode provocar. Ou ainda "O móvel", história de um assassino de aluguel comentando um de seus trabalhos, com a naturalidade de quem conta dia rotineiro num escritório qualquer. O bem humorado conto "Sobremesa" fala de amigos de longa data, que trocam cartas (pois é, leitor, houve tempo sem celulares nem redes sociais). Senhores bem de vida, elogiam o jantar oferecido por um deles, em cartas repletas de afeição. Mas o caldo entorna quando um deles comenta a frieza de certo convidado. A camaradagem e a coloquialidade desaparecem e as linhas ganham um acinzentado tom formal e solene.
Júlio Cortázar nasceu em 1914. Viveu na Argentina, na Itália e na França. Trabalhou como tradutor para a Unesco. Morreu em Paris, em 1984.
Fernando Bandini é professor de literatura (fpbandini@terra.com.br)