OPINIÃO

O ilógico do lógico

07/03/2024 | Tempo de leitura: 3 min

Quando era criança, envolveram-me os contos de fada. Ler sempre foi pleno de magia para mim. Nos contos de fada se encontrava a solução para o cotidiano com o mal colocado às claras e o bem vitorioso. Quanto gostava de comentar com meus pais sobre eles e não interromperam o meu tempo de faz-de-conta. Talvez isso tenha me fortalecido na esperança.

O ilógico, dentro de minhas lógicas, apareceu forte demais quando, aos 13 anos, me tornei voluntária em um orfanato feminino, para ajudar as meninas nos deveres de casa. Pensava eu que ali estavam pela morte dos pais, sem parente algum que pudesse cuidar delas. A maioria, no entanto, fora tirada da família por situações de abuso sexual por alguém próximo. Considerava, naquela época, que o abusador era um delinquente que agarrasse à força alguém e a levasse para uma área deserta próxima. Como assimilar situações como essas, eu que fora criada com tanta proteção e gentileza? Meus pais sempre respeitaram meus sonhos, minha alma, meu corpo, minhas emoções. Encerrou a fantasia e fui me aprofundando em realidades funestas do mundo.

Pouco tempo depois, ao conversar com uma mulher pobre em situação de prostituição, imaginei que pudesse ser ela, por escolha, da boemia, como da letra da música "Dama do Cabaré" de Noel Rosa: "Foi num cabaré na Lapa/ Que eu conheci você/ Fumando cigarro,/ Entornando champanhe no seu soirée./Dançamos um samba,/ Trocamos um tango por uma palestra/ Só saímos de lá meia hora/Depois de descer a orquestra/ Em frente à porta um bom carro nos esperava/ Mas você se despediu e foi pra casa a pé/ No outro dia lá, nos Arcos eu andava/ À procura da Dama do Cabaré/ Eu não sei bem se chorei no momento em que lia/ A carta que recebi, não me lembro de quem/Você nela me dizia que quem é da boemia/ Usa e abusa da diplomacia/ Mas não gosta de ninguém." Uma história tão triste a da prostituída, sem poesia alguma. Inúmeras vezes, chorarmos juntas, até que ela optou por partir antes do tempo. Ouvi e ouço tantas histórias amargas, que não são de folguedos no amanhecer.

À cadeia fui, pela vez primeira, de certa forma por obrigação. Duas das mulheres do grupo recém-criado da Pastoral da Mulher estavam detidas e me questionaram se o Jesus das reuniões era mesmo de verdade. Se fosse, deveria visitá-las. Recordavam-se de São Mateus (25, 36): "Estava na cadeia e foste me visitar". Fiquei 22 anos. Em uma das visitas, diante de uma cela masculina, perguntei como estavam, apesar dos pesares, e um dos detentos me disse: "Bem, porque quando nos falam de Deus, que perdoa e reconstrói, as paredes ficam azuis". Paredes azuis em uma cela úmida, descascada com fundo cinza...

Desde aquela época, encontro, em minha lógica, fatos e acontecimentos ilógicos que me apertam o coração.

Explicava ao pai que ele precisava vir mais cedo para buscar a filha. Além do horário do projeto, havia o problema dela se sentir de certa forma "abandonada". Ele me falou que estava sem celular e me apontou o relógio de pulso, dizendo que não apitava. Compreendi que desconhecia ver horas. Que tristeza! Em pleno 2024, as pessoas ignorarem letras e números. Ilógico.

Prossigo, como escreveu Clarice Lispector e citei outras vezes: "Abro a janela e me sinto responsável pelo mundo".

Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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