OPINIÃO

Água funda

06/03/2024 | Tempo de leitura: 3 min

Contadora de causos, gente da boa prosa, daquela turma da conversa fiada bem enredada e que vai longe. Ruth Guimarães faz parte dessa roda. Escritora paulista, viveu entre 1920 e 2014. "Água funda" foi seu romance de estreia, lançado em 1946, no mesmo ano em que Guimarães Rosa publicava seu livro de contos "Sagarana".

O escritor mineiro apareceu para a crítica e para o público e seu nome foi ascendendo até chegar à constelação dos maiores da língua portuguesa. Ruth Guimarães também foi bem saudada pela crítica quando da estreia. Antonio Candido, em artigo de novembro de 1946, escreve: "A este estilo harmonioso corresponde uma narrativa igualmente feliz, muito animada e bem dirigida, que prende a atenção sem esforçá-la". Brito Broca, no mesmo ano, anota em resenha de jornal: "Ruth Guimarães passou todas suas impressões pelo crivo da arte, dando-nos uma verdadeira rapsódia sertaneja, cheia de encanto e de discreta emoção".

O não menos severo e respeitado Álvaro Lins, em janeiro de 1947, publica no carioca "Correio da Manhã", à época o mais influente jornal brasileiro: "[Ruth Guimarães] sentiu a realidade de uma região para exprimi-la sem outra intenção que não fosse a realidade artística. E esta é sua principal qualidade: o espírito poético de criação literário". A escritora ganhou prestígio e relevância.

Ambientada na região da Serra da Mantiqueira e do Vale do Paraíba, entre São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, "Água funda" embaralha histórias. Como aquela da andarilha Choca - uma doidinha mansa que vive da caridade de alguns - cuja trajetória esbarra na da esnobe Sinhá Carolina, fazendeira altiva, mulher insensível ao sofrimento alheio. E pode-se perguntar por que a Mãe d´Água, espírito obsessor, invade os pesadelos de Joca, caboclo obcecado por Curiango, garota tão bonita quanto esperta? Joca trabalhava por conta, vendendo areia tirada do rio em carroça puxada por boi. Até o dia em que transforma o boi em churrasco para os convidados de seu casamento. Daí em diante, Joca vai trabalhar na usina de açúcar instalada na região. E qual a força da maldição lançada pelo agenciador de trabalhadores, agredido e escorraçado do lugar? Prosa encorpada essa de Ruth Guimarães, em que superstições e encantamentos entrelaçam os dedos, ao mesmo tempo em que o realismo mais cru exibe a decadência econômica da outrora pujante região cafeeira.

Ruth Botelho Guimarães nasceu em Cachoeira Paulista e viveu parte da infância em Pedra Branca, no sul de Minas Gerais, numa fazenda em que seu pai era administrador. Mudou-se em 1938 para São Paulo. Formou-se na Escola Normal Caetano de Campos. Conheceu Mário de Andrade, que a iniciou nos estudos do folclore brasileiro. Ingressou na Universidade de São Paulo, onde graduou-se em Letras Clássicas. Colaborou em jornais e revistas, escrevendo artigos, contos, crônicas e crítica literária. Graduou-se em Dramaturgia e Crítica pela Escola de Arte Dramática, em 1961. Em 2008, tornou-se a primeira escritora negra eleita para a Academia Paulista de Letras. A escritora morreu em 2014, aos 93 anos de idade, em Cachoeira Paulista.

Fernando Bandini é professor de literatura (fpbandini@terra.com.br)

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