OPINIÃO

O quintal do seu Morais

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Brincadeira de rua nem sempre tem final infeliz. E o infeliz sempre gira em torno de uma queda, de uma briga e alguém sair chorando para chamar o irmão mais velho para "acertar as contas". Brincadeira de rua, no final da década de 1950 na Vila Progresso, tinha uma espécie de prêmio para os garotos mais atrevidos. E o prêmio vinha, exatamente, depois da brincadeira: o quintal do seu Morais.

Nos meus tempos de criança, jamais cruzei com este homem. O que sabia era que seu Morais era o dono de um terreno a 30 metros da casa onde eu morava, bem na esquina. O terreno tinha de tudo: pés de manga, goiaba, caqui, abacate, laranja, lima e uma sombra deliciosa que servia para refrescar a garotada que acabava mais uma partida de futebol.

Os meninos deixavam a rua e corriam para o quintal. Difícil era o acesso, pois o terreno tinha apenas uma cerca de bambus, amarrados com arame farpado. A preocupação maior era pular a cerca sem se machucar nos arames. O objetivo, claro, era saborear as frutas do quintal do seu Morais.

Depois de colhidas, o pessoal sentava na sombra das árvores e ficava contando histórias, relembrando o jogo, enquanto um dos garotos ficava na esquina de "prontidão". Se seu Morais aparecesse, todo mundo tinha que sair correndo.

Apesar de nunca ter visto este homem, nem imaginar como era fisicamente, morria de medo. E sempre que acabava o futebol na rua, lá ia eu para minha casa. Os amigos me chamavam de covarde, mas agora era eu quem zombava deles: pra que correr riscos se tinha todas estas frutas no quintal de casa?

Sempre que o pessoal seguia até o quintal do seu Morais, me lembrava das recomendações de minha mãe: não faça como os outros garotos! Eles estão invadindo um terreno para roubar frutas!

Concordava com a cabeça, mas questionava dona Angelina: "mas se os garotos não comem, elas acabam estragando, o chão está cheio de frutas apodrecendo..." Os olhos azuis de dona Angelina vinham em minha direção como uma mensagem do céu, como que dizendo "filho, procure sempre fazer o que é certo..."

Aqueles olhos cor de céu e aqueles cabelos brancos como nuvens me mostravam que o caminho certo era não "invadir" o terreno do vizinho. Mas curiosidade de criança é algo inexplicável. Chegava em casa depois do futebol e ficava no portão, olhando o movimento na rua, sonhando em ver o seu Morais. Mas ele nunca aparecia...

Quantas e quantas vezes eu corria até o pomar, apanhava uma goiaba vermelha e voltava para o portão. Enquanto saboreava a fruta, sonhava com o "malvado" do seu Morais: um homem de bigode enorme, com um chapéu preto na cabeça e andando numa bicicleta...Nem sei se o seu Morais era mesmo "malvado" e nunca questionei este ponto com minha mãe. O que minha mente registrava era: por que uma pessoa tinha um terreno tão grande, num bairro onde morava um número tão grande de crianças e deixava as frutas estragando na árvore?

Minha reflexão terminava mudando a ideia de que seu Moraes era "malvado". Minha conclusão é de que ele era um homem legal, que gostava de crianças felizes. E gostava tanto, que deixava as frutas ali, nas árvores, só para alegrar a criançada da Vila Progresso!

Nelson Manzatto é jornalista (nelson.manzatto@hotmail.com)

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