OPINIÃO

Dos pesadelos aos sonhos

18/01/2024 | Tempo de leitura: 3 min

Quanto mais a moça, que é de muita delicadeza e ternura comigo, me relata as situações de sua vida, amplia minha compaixão por conhecidos e desconhecidos e percebo que julgar, seja quem for, me diminui como ser humano. Albert Camus (1913-1960 – escritor e filósofo franco-argelino) escreveu: "Não se pode criar experiência. É preciso passar por elas". A vivência dela me toca, embora não seja a minha, porque é plena de vida que supera mortes. Contou-me de seu tempo de uso de crack e dos monstros que essa droga lhe trazia e ficaram impregnados nela.

Quando escrevo sobre pesadelos é porque teve infância e juventude difíceis, embora com momentos de euforia. Segundo o que me contou, sua única experiência de infância foi na creche onde permaneceu até os seis anos. Depois passou "de mãos em mãos com parentes sem muita estrutura emocional". Escreveu: "Quando eu morava no setor... em..., ficava esperando que minha mãe ou alguma tia chegasse em casa para cuidar de mim e do meu irmão, pois a gente sempre ficava sozinho. E a solidão que experimentei na infância machuca até hoje e se transformou em estilo de vida".

Considera-se afortunada por estar viva posto que passou 15 anos nas trevas do Crack. Salvou-se de três tentativas de homicídio. Algumas pode não ter percebido. Contei-lhe sobre uma querida minha, que foi assassinada com um tiro na nuca enquanto amarrava o tênis. Falou-me sobre as pessoas que morrem distraídas e não notam a "dona da foice" chegar.

A pior das tentativas foi em um bairro do Estado em que nasceu, onde se encontravam localizados os bordéis de quinta categoria e espaços de depravações, além de vícios, com dores e ranger de dentes. Conseguindo se esconder, assim que a mulher que a perseguia e seus adeptos perderam-se na noite, tomou o primeiro ônibus e foi embora com a sombra da morte na alma. Anos mais tarde, voltou ao local, durante o dia, sendo atacada com uma barra de ferro que lhe rendeu 15 pontos na cabeça.

O Crack surgiu em sua vida depois do álcool, da maconha e da cocaína, em momento de muitas perdas e depressão. Segundo sua fala, ao estar bem com você, mesmo nos transtornos da vida, o Crack não pega o indivíduo como refém, ao contrário de quando está aniquilada.

Liberta do Crack, possui, às vezes, pesadelos de pessoas correndo atrás dela com o propósito de matá-la.  Criou pavor da pedra.

Relata que não é fácil contar essas experiências horríveis em que o medo se transforma em pavor e o pavor em síndrome de pânico. Discorre a respeito a fim de que aqueles que pensam não conseguirem mais sair do Crack, recuperem a esperança de que é possível sair do pesadelo e entrar no sonho. É ela exemplo vivo. Mantém-se atenta a: "Desanimar nunca, caminhar sempre!" Sente-se como se fosse um soldado que saiu para uma guerra sangrenta e conseguiu voltar para casa. Por isso tem vontade de fazer coisas novas como: sorrir, abraçar árvores, beijar os animais, confraternizar com o ser humano, desfrutar a vida.

Quando se sente no vazio interior, na solidão, com chances de reincidência, busca a "dopamina de Deus", como cuidar de suas flores.

Também de Albert Camus e que combina com ela: "E no meio de um inverno eu finalmente aprendi que havia dentro de mim um verão invencível".

           

Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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