OPINIÃO

Há quase 30 anos

10/01/2024 | Tempo de leitura: 3 min

Recebi semana passada o blu-ray, recém-lançado no Brasil pela Versátil Home Vídeo, de "Trainspotting: Sem Limites", o cult movie que chacoalhou o mundo em 1996. Uma coprodução entre Reino Unido e Estados Unidos com o DNA do primeiro. Com um diretor ainda jovem que nunca mais repetiria esse feito, e que deixava claro todo seu cinema de exageros, seus débitos com a estética do videoclipe e personagens frenéticas.

Começa justamente assim, com uma corrida: Renton (Ewan McGregor) e seus colegas correm da polícia. Não sabemos o que fizeram. Nem precisamos. Esse é o tom: eles correm, autoridades correm atrás deles. Eles infringiram a lei. Tudo está dado aí, nesse começo embebido em velocidade. Mesmo quando mostra um furto feito com movimentos lentos, o diretor Danny Boyle inclina-se à música eletrônica, às batidas, como estas fossem - e são - o interior amalucado de seu jovem anti-herói atrás de uma porta de saída.

Renton é viciado em heroína. Sobe às nuvens com o consumo da droga, na companhia de seus amigos, e depois desce ao inferno quando acredita que pode se livrar da mesma. Diziam, à época do lançamento, que "Trainspotting" era o primeiro filme a mostrar alguém se drogando e sentindo muito prazer. Isso não é exato. O que "Trainspotting" talvez tenha inovado é na maneira como sua estética anárquica e violenta serve quase sempre ao cômico.

Pense em John Travolta drogando-se em "Pulp Fiction", lançado dois anos antes. Em sua face, a bordo de seu carro conversível rumo ao casarão de Uma Thurman, enxergamos o prazer, vemos ele flutuar. A maneira como Tarantino trata essa "viagem" é bem diferente da de Boyle, que sempre recorre à loucura engraçada, ao beliscão travesso e selvagem.

A aventura de Renton começa e termina em um crime. Começa com camaradagem, com rapazes e moças que se encaram em suas casas e pubs e se reconhecem, em um espírito de união que, aos poucos descobrimos, pode se romper facilmente. É o que torna a escolha final de Renton - que não vale revelar - tão verossímil. No fundo, ele não aguenta mais viver daquela forma. E deixa isso claro, mais tarde, em sua viagem a Londres, no momento em que escuta os urros de Begbie (Robert Carlyle) durante uma de suas brigas.

O filme apela a tudo. Nos malabarismos narrativos de Boyle, acompanhamos, por exemplo, três situações diferentes ao mesmo tempo em montagem alternada: Renton em uma aventura com uma garota (Kelly Macdonald) que acaba de conhecer; Spud (Ewen Bremner) na casa de sua namorada, impotente, dormindo, e com problemas intestinais; e Tomy (Kevin McKidd), também com sua namorada e sem a fita na qual estava gravado o sexo entre ambos. São situações que conduzem sempre ao inesperado - com direito ao escatológico.

Renton sabe como ocultar a consciência em desespero. Seu discurso final parece falar sobre felicidade. Às mentes ingênuas dos anos 1990, a minha entre elas, é provável que seu discurso real tenha passado sem perceber: é sobre nossa sociedade de consumo, de falsas imagens, de idealização, sobre tudo o que o dinheiro pode comprar. Aponta a mais um golpe antes de outra queda - de uma nova picada na veia, de uma "viagem". Anos depois, "Clube da Luta" parecia coroar essa ideia: um filme ainda mais amargo, também com passagens cômicas, sobre um homem cansado da sociedade ao redor, louco para ser outro.

Vi "Trainspotting" pela primeira vez em VHS, em meados de 1998. Há quase 30 anos. Hoje enxergo todas as suas imperfeições, todos seus excessos e manipulações. Por algum motivo, e isso certamente se deve à nostalgia, esse "chacoalhão" nunca mais saiu da cabeça.

Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com (ramaral@jj.com.br)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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