OPINIÃO

Morar na rua?


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O direito à moradia não constou da Constituição Cidadã em 1988. Foi uma inclusão do constituinte derivado, mas ganhou dimensão ímpar, justamente porque um fenômeno se agudizou nos últimos anos: o crescimento do número dos que moram nas ruas.

No Brasil, quase duzentos e quarenta mil pessoas não têm onde morar, sequer precariamente. Os dados foram divulgados pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, publicado no último setembro. São Paulo, capital, tem mais de cinquenta e três mil pessoas ocupando logradouros públicos. A taxa de crescimento dos habitantes das ruas é maior do que a do crescimento da população.

Sabe-se que essa verdadeira chaga social não é exclusiva de um país de flagrantes desigualdades e injustiças, como é o Brasil. Os Estados Unidos chegaram a contabilizar, em uma noite de fevereiro de 2023, mais de quinhentas e oitenta mil pessoas dormindo nas ruas americanas.

A maioria dos que não têm onde morar são os naturalmente excluídos: negros, pardos, sexo masculino, entre trinta e cinquenta anos. É aquela parcela da população que já sofre com racismo, exclusão, marginalização e que transita entre legalidade e ilicitude, porque exposta à calamidade do fatídico uso de substâncias entorpecentes.

Chocante é constatar que o "celeiro do planeta" convive com tal situação. Avoluma-se o contingente de ocupantes dos passeios, das reentrâncias dos edifícios, dos baixios dos viadutos. Será insolúvel essa questão?

É evidente que a rua não é lugar apropriado para se morar. Não se compatibiliza com o supraprincípio da dignidade humana, norte orientador da democracia brasileira. E numa cidade como a nossa, o tema é mais facilmente enfrentado do que numa insensatez que se chama São Paulo, capital cosmopolita, complexa e praticamente insustentável.

É função da municipalidade cadastrar o pessoal de rua e atuar no sentido de propiciar oportunidades para aqueles que queiram deixar essa condição. Pois não são todos os que desejam sair da rua. O problema é complexo e há de ser encarado sob múltiplos olhares.

Sob o enfoque meramente jurídico, o logradouro público - avenidas, ruas e praças - são bens de uso comum do povo. Não podem ser apropriadas com exclusividade por qualquer pessoa, embora todo ser humano componha essa realidade chamada "povo".

Pense-se que o proprietário de uma casa pode se servir de um arsenal de instrumentos para fazer com que o invasor saia de sua residência. Pode recorrer à força física, pois o ordenamento não quer que a cidadania seja covarde. Mas tem todo o sistema Justiça para obter reintegração de posse.

Ora, quem - por sua vontade e havendo possibilidade de sair da rua - não quer fazê-lo, parece lícito que o poder público devolva à população aquilo que é de uso comum a todos e pertence, difusamente, a todo o povo.

É preciso examinar o que leva as pessoas às ruas. Dramas, tragédias, patologias mentais. Desemprego, pobreza, desestruturação familiar. O que é incabível e desconsiderar o tema e não enxergá-lo como um grave desafio para o governo e para a sociedade. Os moradores de rua não são invisíveis. São nossos irmãos. São semelhantes. São "o próximo" de que falam os Evangelhos, aos quais nós - que nos autodenominamos cristãos - deveríamos observar à risca.

Embora inviável o enfrentamento integral, algo se pode fazer no mundo micro. São as micro-infelicidades que levam alguém a morar na rua, que não é destino digno para qualquer criatura da espécie racional.

José Renato Nalini é reitor de universidade, docente da Pós-graduação e Secretário-Geral da Academia Paulista de Letras (jose-nalini@uol.com.br)

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