OPINIÃO

Instintos

04/01/2024 | Tempo de leitura: 3 min

Encontrei-me, por acaso, com minha amiga Beatriz logo após o Natal. Há anos que não nos víamos. Beatriz é uma pessoa com quem tive sintonia assim que nos conhecemos. Um encanto de gente. Tristonha, de imediato contou-me que o sobrinho, José Manuel, se suicidara. Conheci-o no início da adolescência. Menino bonito, mas de olhar sempre à procura. Não acontecera fato algum de tragédia para essa atitude. Terminara a faculdade e trabalhava na área. Segundo ela, no entanto, seus olhos taciturnos permaneciam. Amado pelos pais e a família toda. Passava por tratamento com psicólogo e psiquiatra.

Quem possui essa dor na família, conviveu com alguém que perdeu um amado assim ou conheceu um suicida, sabe como angustia o coração e as perguntas que surgem como: "Teria dado sinais e não percebi?", "Poderia ter evitado?". O que fazer agora diante desse infortúnio para honrar a memória de quem, em um momento, mergulhou na morte.

Para a psicóloga Ana Cristina Codarin Rodrigues, há transtornos psiquiátricos que favorecem o suicídio e outro fator importante é quando o instinto da morte for maior que o instinto da vida no ser humano. Ela cita o psicoterapeuta existencial Valdemar Augusto Angerami: "O suicida é o homem que é capaz de se defender de concepções de vida aniquiladoras, mas estas concepções viram seus acusadores. (...) O homem que se mata o faz porque está previamente e constantemente estimulado a adotar esse comportamento autodestrutivo".

Segundo a psicóloga, o José Manuel deveria ter algum transtorno psiquiátrico, que contribuía para: uma autoimagem distorcida, instabilidades emocionais, medo do abandono, sentimentos confusos de inferioridade e de não se sentir amado. "Nesse caso - diz ela -, é muito complicado, pois chega uma hora que a pessoa esgota todas as forças que impulsionam para a vida e só resta o instinto da morte, para cessar a angústia e a dor que vivem por dentro. O vazio existencial é tão grande, que não se percebe a construção de sua própria existência". Fechou as cortinas da vida ou, talvez, no instante em que não daria mais para voltar, arrependeu-se.

Para Ana Cristina, ele conseguiu viver 34 anos graças ao amor que recebeu da família, mas o que ele sentia por dentro não dependia dos seus. Para a família, no entanto, a sensação de tristeza e impotência é grande.

Tenho rezado muito por eles e pela alma do José Manuel. A atitude dele não foi enfrentar a Deus, dizendo não ao Criador. Foi um instante sem lucidez. Sem dúvida, o Pai o recebeu em Seus braços misericordiosos, que curam todas as feridas.

Domingo passado, na homilia do Padre Márcio Felipe de Souza Alves, Reitor e Pároco do Santuário Santa Rita de Cássia, recordei-me da Beatriz. Colocou ele que, com sua profundidade de quem é íntimo de Deus, quando Simeão (Lucas 2, 35) disse a Maria: "Quanto a ti, uma espada te traspassará a alma", ela e José não sabiam do que se tratava, porém a sombra da Cruz já pairava sobre eles e é essa sombra abençoada que nos protege, nos dá força e nos leva ao Céu. Basta que não rejeitemos essa sombra".

Os pais do José Manoel, que lhe transmitiram a fé, e seus familiares, vivem hoje sob a sombra da Cruz e é ela que os levará, no tempo de Deus, ao reencontro com ele.

Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)

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