Ao chegar na Ong do contraturno escolar - a Casa da Fonte -, nos seus quase sete anos, o menino não estranhou. Já estivera por lá algumas vezes, acompanhando os irmãos mais velhos ou a mãe.
Cabia-lhe, naquele tempo, além das aulas que escolhera, os brinquedos, o gramado com as traves para futebol, a merenda... Seu jeito dengoso atraía de imediato os adultos que por lá passavam. Amava as brincadeiras e os colos.
Naquela época, não se importava com os fatos de suas imediações, que passou a acompanhar mais de perto ao ganhar uma bicicleta usada de um parente da mãe. De certa forma, ela lhe deu a oportunidade de conhecer outros mundos, nos quais as noites murmuram para que vozes mais altas impeçam "surpresas".
A puberdade traz questionamentos incontáveis por trazer travessias. Fortalecimento para a travessia se dá acendendo, diante dos mistérios e das dúvidas, a chama de uma vela.
Após o período de sedução pelos traços e comportamentos infantis, dirigiu seus passos em direção aonde o poderio se dá pelos medos e ilusões.
No auge de seus treze anos, de porte pequeno, considerou que o conhecimento e a escolha pela violência poderia fazê-lo crescer. Nos braços, como sinal, uma pulseira bracelete com pinos laterais. Dependendo de quem estivesse por perto ou como o olhavam, proferia ameaças de agressões na rua. Poucos o admiravam, alguns o temiam e a maioria procurava ter distância dele.
Nos primeiros meses deste ano, na Casa da Fonte, em seguida a trocar ofensas com uma das meninas de sua idade, a agrediu. A menina possuía um histórico de medo causado por desconsolo. Providência tomada em relação a ele: acabara de perder a vaga. Não foi expulso, perdeu a vaga. Expulsão é uma espécie de "jamais". Perder a vaga é por um tempo determinado, caso deseje retornar, depois de um período de comportamento diferente em outros locais, como na escola regular por exemplo. No caso dele, perdeu a vaga no ano.
No final de dezembro, começaram chegar os primeiros acenos de que desejava recuperar sua vaga para 2014. Emocionei-me. Não imaginava que, com o mundo que lhe era entregue, nas oscilações da adolescência, pretendesse retornar.
Lembrei-me da música "Anunciação" de Alceu Valença: "Na bruma leve das paixões que vêm de dentro/ Tu vens chegando pra brincar no meu quintal/ No teu cavalo peito nu, cabelo ao vento (...) Tu vens, tu vens/ Eu já escuto os teus sinais. (...) A voz do anjo sussurrou no meu ouvido/
Eu não duvido, já escuto os teus sinais (...) Eu te anuncio nos sinos das catedrais".
Reconquistou seu espaço nos últimos cinco dias de aula de 2023. Fez a diferença para todos.
Trouxe, em sua bagagem para retornar: as considerações da diretora da escola, um jeito tímido de pedir, as reações de saudade, o desapego aos instrumentos que ferem, o desejo de rever as pessoas - que sempre lhe disseram e o ajudaram para o bem - e um olhar de outrora, pleno de Natal.
Vida ganha. "A voz do anjo sussurrou no meu ouvido/
Eu não duvido, já escuto os teus sinais (...) Eu te anuncio nos sinos das catedrais". Mérito dele e dos que investem em esperança.
"Glória a Deus no mais alto dos céus e na terra paz aos homens que são do seu agrado" (Lucas 2, 14).
Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)