Observo o menino, às vezes mais próximo, às vezes mais distante desde os seis anos. Não conheço os seus medos daquela época, mas sei de seus destemores ao avistar uma pipa. Atravessava a rua correndo, sem olhar dos lados, para alcançá-la. Maior que o risco de ser atropelado, encontrava-se o perigo de perdê-la. O susto era meu e, aliviada, após não vê-lo ferido me vinha um trecho da música "Aquarela" do Toquinho e Maurizio Fabrizio: "Se um pinguinho de tinta/ Cai num pedacinho azul do papel/ Num instante imagino/ Uma linda gaivota a voar no céu. /Vai voando/ Contornando a imensa curva, norte, sul/ Vou com ela viajando/ Havaí, Pequim ou Istambul..."
O voo que buscava, no entanto, era para a terra distante do pai. Não se recordava dele. Viram-se por um ou dois anos. Depois, ele voltou para o Estado dele ou a mãe que retornou à cidade dela.
Menino com transtornos, dava-se mal com os amigos do futebol, quando seu time não era campeão. Atingia algum deles com sua força além do limite Com os maiores, nesse caso, esbravejava, sem enfrentar. A família não conseguia segurá-lo dentro de casa. De uma hora para outra, abria a porta e se perdia pelas calçadas e terrenos próximos. Havia nele uma sede de procura. Meninos crescem e, ao não receberem o tratamento adequado, acentuam-se os seus problemas na adolescência.
Não conseguiu aprender a ler e a escrever, mas foi para uma outra série porque o seu tamanho e agressividade se tornaram um risco para os menorzinhos. Na falta de consideração, intimidava os que estavam nas proximidades. Ficava na escola até o horário da merenda. Depois disso, criava caso ou dores para ir embora. Imagino o que seja para um aluno numa sala lotada sem a compreensão do que é escrito e falado. Seus únicos interesses: bicicleta, pipa e futebol com vitória.
Após muitos desencontros, o pai aceitou que ele fosse para sua vida. Lá havia campos enormes e cavalos. Entusiasmou-se. Disse-me como chamaria o cavalo que por certo ganharia do pai. E quem sabe se daria melhor com os estudos. O tio o levou. Nada de escola, nada de ganhar um cavalo, sem pipa na terra vermelha. O pai era homem do sertão, acostumado à dura peleja no dia a dia, com lucros para terceiros. Deram-lhe uma enxada para ajudar o pai. Para eles não era um adolescente, mas sim homem feito.
Em uma de suas desarmonias com agressividade, segundo ele, o pai o levou na casa de um "cabra" e ele ficou, uma tarde e uma noite, amarrado no mourão. Que triste e doloroso!
Retornou para a casa de sua infância, taciturno, sem sorriso e mais perdido do que antes.
Recentemente, pediu à Nega – Marcilene -, líder de bairro, para fazer trancinhas no cabelo. A cada toque na cabeça, para atender um desejo dele, um sorriso aberto, como da infância. Era carícia, à qual não está acostumado, da Nega, da Deuzidéri e da Mayara. Penso que, além disso, foi um sopro nas marcas do coração, após 20 horas de horror na "casa do cabra".
Voltando à música "Aquarela": "Entre as nuvens vem surgindo/ Um lindo avião rosa e grená/ Tudo em volta colorindo/ Com suas luzes a piscar/ Basta imaginar e ele está partindo/ Sereno indo/ E se a gente quiser/ Ele vai pousar..."
Pousou em mãos que entendem de ternura e fazem tranças como esperança.
Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)