OPINIÃO

Os olhos de dona Conceição

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"Olhos d'água" é um livro de contos da escritora mineira Conceição Evaristo. A história que dá título à obra é dessas pequenas joias que a Literatura pode oferecer. Ao lado dessa, há outras preciosidades, como "Luamanda", "Beijo na face" e "Quantos filhos Natalina teve". Muitas de suas personagens são mulheres negras, tentando acertar os ponteiros num ambiente hostil marcado pelo atraso (também conhecido por racismo, sexismo, exclusão...). Como Salinda, a protagonista de "Beijo na face", enredada num relacionamento falido há tempos, segurando as pontas muito por conta dos filhos. Até que... Confira, leitor. Tem ainda Cida, nascida numa cidadezinha interiorana, em que todos parecem lentos demais, vagarosos ao extremo para o ritmo sempre agitado da protagonista. Muda-se para o Rio de Janeiro e o movimento intenso da cidade deixa a garota ainda mais elétrica: "A vida seguia no ritmo acelerado de seu desejo. Trabalho, trabalho, trabalho. O dia entupido de obrigações. A noite festejada de rápidos gozos. Os amores tinham de ser breves".

Maria, personagem principal do conto homônimo, volta para casa num ônibus. Está cansada. Reconhece o sujeito que senta a seu lado e com ela conversa baixinho. Um assalto embaralha a situação. A prosa de Conceição lança mão de recursos da poesia, com figuras inusitadas e ritmo próprio: "E foi no delírio da avó, na forma alucinada de seus últimos dias que ela, Querença, haveria de sempre umedecer seus sonhos para que eles florescessem e se cumprissem vivos e reais" (do conto "Duzu-Querença"). "Entre encontros e desencontros, Luamanda estava em franca aprendizagem. Uma aprendizagem de no por dentro e fora do corpo. A cada amor vivido, Luamanda percebia que a lição encompridava" (do conto "Luamanda").

Mas não só de mulheres vivem seus enredos. Ardoca é um rapaz que trabalha muito e dá título ao conto. Vive chacoalhando nos trens de subúrbio. E num sábado de pouco movimento nas estações, envolve-se numa trama inusitada. Tem ainda Kimbá, garotão bonito, atendente de supermercado, que se vê enroscado num triângulo amoroso. Ou ainda Di Lixão, morador de rua, sofrendo com uma prosaica dor de dente. E mais a história de Lumbiá, garoto fascinado por presépios. Na época do Natal, zanzava pela cidade atrás dessas representações singelas do menino pobre nascido numa manjedoura, cercado de carinho e expectativas.

Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em Belo Horizonte, em 29 de novembro de 1946 (por coincidência, este artigo sai na data de seu aniversário). Trabalhou como empregada doméstica na capital mineira. Estudou em escolas públicas de Belo Horizonte e concluiu o Curso Normal (antigo curso técnico, equivalente ao atual Ensino Médio, para formar professores para o ciclo básico da Educação). Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como professora na rede pública. Cursou Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fez mestrado e doutorado na área. No site "Literafro" há um texto, "Conceição Evaristo por Conceição Evaristo", em que a autora trata de sua trajetória. Parabéns, dona Conceição.

Fernando Bandini é professor de literatura (fpbandini@terra.com.br)

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