OPINIÃO

Tantos nãos e um sim

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A moça nasceu na periferia do Rio de Janeiro, que para ela não foi "cidade maravilhosa, cheia de encantos mil..." O pai se perdeu em uma noite qualquer. Não teve lembranças dele. O novo marido da mãe abusou dela dos 11 aos 13. Desconhecia um caminho para contar à mãe o que se passava e doía tanto em seu corpo, na mente e no coração.

Ao perceber, dois anos após, a figura materna ouviu do companheiro que era assediado. Não admitiu que a filha lhe roubasse a "felicidade" e a colocou na rua.

Menina ainda, com limites nos estudos, porque a violência sexual se sobrepunha à explicações da aula, pegou a sacola com as coisas que a mãe jogara na calçada e aceitou que homens estranhos usassem suas carnes para sobreviver. Já escrevi sobre ela.

Em Jundiaí chegou aos trinta anos e com uma filha de cinco. Estabeleceu-se no barraco da invasão recente que ficava em um vale. Pagava para a vizinha cuidar da filha, enquanto se posicionava na praça central.

Veio no primeiro convite para participar da Pastoral da Mulher – Santa Maria Madalena. Era de grande fé e amava a Palavra. Contou-nos o que lhe acontecera e nos pediu que a ajudássemos a arranjar um emprego. Desejava de todas as maneiras sair da prostituição. Perguntamos em que se imaginava trabalhando: na limpeza urbana, varrendo rua.

Uma semana depois, estava ela, de uniforme, feliz, ao passar pelos mesmos locais onde, antes, aguardava quem lhe pagasse pelo uso do corpo.

Passados uns cinco meses, decidiu recorrer ao plano médico da empresa, para dizer das dores imensas que, há tempo, sentia no abdômen e os sangramentos. O diagnóstico veio rápido. A doença já ultrapassara algumas barreiras. O tratamento não surtiu o efeito possível.

O hospital de referência de seu plano de saúde era o Paulo Sacramento. Naquela época, não existia setor paliativo e ela piorava a cada dia. Em seu barraco não havia condições de ser tratada. Estava de alta, porque não havia mais o que fazer.

Conversei com o Dr. Antonio Mendes Pereira, na época um dos sócios, sobre a história dela e a necessidade de permanecer em um local com dignidade. Dr. Antonio eu conhecia de há muito. Seu avô era irmão de minha bisavó, de solteira Celestina Mendes Pereira. Emocionou-se com a história dela e autorizou que permanecesse internada até o último suspiro. Quando o coração é bom, a generosidade ultrapassa as normas dos contratos.

Lembrei-me demais do Dr. Antonio, que os anjos vieram buscar no último dia 31 de outubro, na fala de nosso querido Bispo Emérito, Dom Vicente Costa, no Carmelo em 19 de novembro, sobre a mensagem do Papa Francisco no VII Dia Mundial dos Pobres, a partir do Livro de Tobias (4, 7), "Nunca afastes de algum pobre o teu olhar". Insistiu na importância dos gestos concretos e naquilo que disse Santa Teresinha: "...compreendi que a caridade não deve ficar encerrada no fundo do coração".

Além de ir comigo visitá-la na enfermaria, acompanhou diariamente os cuidados que tiveram com ela e foi ele que me avisou no horário de seu último suspiro.

Dentre tantos "nãos" que ela recebeu na vida, o Dr. Antonio lhe ofereceu um sim forte, que lhe permitiu morrer com dignidade em alvos lençóis.

Jamais me esquecerei das torturas da vida dela e do sopro de bem do Médico que honrou sua missão.

Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)

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