OPINIÃO

Atração pelo passado

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Todo cinéfilo, em algum grau, sente atração pelo passado. Não apenas o passado preso à película, aos seus atores e às composições. Falo também de um passado relacionado à experiência de ir ao cinema, de lembrar do cheiro da sala de espetáculo que não existe mais, ou do barulho na sessão quando o vilão pregava um susto, ou quando se aplaudia o desfecho.

Alguns amigos não compreendem o sentido do aplauso em uma sala de cinema. Lembro-me bem quando o público de uma Mostra Internacional de Cinema, em anos anteriores, aplaudiu "Terra de um Sonho Distante", de Elia Kazan, em seu término. O que ele aplaudia? O poder de um cineasta em seu auge, sem dúvida. E lá estava eu, embasbacado, em uma das poltronas de couro preto. Passava da meia-noite quando o filme chegou ao fim. Lembro da chuva do lado de fora do Cinesesc, das pessoas aglomeradas, satisfeitas com o que viram.

O último filme de Kleber Mendonça Filho, "Retratos Fantasmas", fala exatamente dessa atração pelo passado. É um depoimento, uma revelação das coisas palpáveis ou não que o cineasta viveu - sua relação com a mãe, com a casa e sua arquitetura transformada, com o cão do vizinho, com os antigos centros urbanos e seus cinemas de rua. Cinema-memória sem pieguice, de alguém que não se importa em deixar escorrer o impreciso.

Pois "Retratos Fantasmas" não quer se filiar à precisão. Não é um documentário baseado em dados ou relatos diversos, com imbricações de pontos de vista. É uma confissão. Talvez nem seja um documentário, uma vez que suas imagens não pretendem nos dizer o que é verdadeiro, mas sim representar algo que pensa, uma imagem que pensa, vocalizar as ideias de seu autor, seus sentimentos, sua relação com os antigos espaços de um Recife que, como outras cidades, vê locais morrerem e a migração do dinheiro para outro bairro.

É um vício, algo apressado, chamar filmes com depoimentos e imagens reais, sobre acontecimentos reais, de documentário. Viciados como estamos no que queremos provar, procuramos sempre pelo real. No caso de "Retratos Fantasmas", quem for atrás de um documentário sobre cinemas de rua e espaços urbanos pode se frustrar - ainda que seja isso também. O filme de Kleber é um ensaio sobre nossa relação com os "fantasmas" que continuam a nos incomodar, com as fotografias que trazem traços e borrões inexplicáveis, sinais que tentamos relacionar ao momento vivido.

Retornam, por isso, seus filmes anteriores, "O Som ao Redor", "Aquarius" e "Bacurau". No primeiro, o Recife de classe média alta e rica pouco a pouco revela seus fantasmas e sua mal curada relação com o passado, com a escravidão e seus abismos entre classes. No segundo, a relação afetiva de uma mulher com seu apartamento, sua resistência para que toda uma memória siga constituída. No último, todo um povo, toda uma cidade, tenta resistir à chegada do inimigo estrangeiro. Sua arma é sua própria cultura.

Os melhores momentos de "Retratos Fantasmas" são aqueles nos quais Kleber expõe fotos de antigas fachadas dos cinemas recifenses, com os nomes dos filmes apresentados e frases de efeito para atrair o público. De alguma forma, esses títulos dialogam com suas épocas, ressignificam imagens, marcam as vidas daqueles que estiveram por ali e, para guardar uma lembrança, tiraram fotos na frente dos cinemas. Filmes são como espaços: levam-nos às recordações do que vivemos e de como éramos. Também fazem pensar no que nos tornamos.

Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com (ramaral@jj.com.br)

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