Deparo-me com o moço há pelo menos uns dez anos, quase sempre por lugares próximos. Desde a primeira vez que nos vimos, me trata por tia.
Da nossa mãe sempre recordava o nome. Diz-me que sentir sua falta que, da janela da sala, a sorrir lhe acenava. Vem depressa quando me vê e pergunta se quero que tire matinho da calçada pelo valor de cinco ou dez reais e acrescenta: "Como a senhora se chama mesmo?" Aí me fala que ainda não almoçou ou que precisa comprar remédio.
Da mesma forma que aparece de repente, vai embora.
Sei que possui uma pequena casa, porém sem água e luz. Não trabalha, portanto não há como pagar as contas. A família que deixou para ele. Em dias de calor, reclama que precisaria tomar banho. Vive assim à deriva.
Pelo que percebo, não é infrator, jamais foi detido, porém possui alguma prisão, seja a dependência de álcool ou de drogas ilícitas.
Gosta de me contar algum fato do dia, acontecido em seu entorno. Há poucas semanas, estava agitado. Um gato caiu do muro em uma casa ao lado da sua e o cachorro matou. Estavam querendo culpá-lo. Repetiu a história várias vezes e dizia: "Imagine, tia, eu parar na cadeia. Não quero encrenca com polícia. Nunca tive. Tenho medo!" Fiquei com pena. Seu olhar de homem adulto, deve ter quase quarenta anos, gritava socorro e pedia proteção. Imagino que, na luz do dia, se sinta mais confortável, entretanto, nas noites, a esmo, assombram-no fantasmas do passado. E não há como ignorar que ocupou um berço, mamou, foi embalado em um ou mais colos, deu os primeiros passos e depois... Desconheço. Descreio que as pessoas nascem inclinadas a viver sem rumo.
No dia 12 de outubro, ao chegar da Missa, ele surgiu. A proposta foi a mesma: tirar matinhos da calçada ou remover algum entulho, caso houvesse. Antes que eu respondesse, prosseguiu: precisava me contar uma coisa. Era ele menino. O pai costumava ser ignorante, se impunha aonde ia, falando alto, arranjando encrenca. Era dia de Natal. O pai, como nos domingos e feriados, chegou cheirando álcool. Desentendera-se no bar com um moleque de uns 14 anos. Achava-se indignado com o pirralho que o afrontara, por ter negado com irritação um cigarro. O fedelho ainda lhe disse que voltaria para se vingar. Um moleque filho do acaso, que não se sabia de onde vinha.
Naquele tempo, não era preciso trancar os portões da casa. Todos conhecidos na vila As mulheres recorriam às vizinhas se faltasse açúcar para o bolo.
Almoçavam quando o garoto invadiu a sala. O pai se levantou com violência e ameaçou, aos gritos, que iria matá-lo. O menino, da escada, observou o revólver do indivíduo debaixo do sofá. Tomou posse dele e atirou cinco vezes. O pai morreu ali mesmo. Emocionei-me. Sussurrou: "Não posso chorar, tia! Homem não chora".
A mãe arranjou, mais tarde, um outro companheiro e mora em cidade distante.
Jamais o julguei - quem sou eu para julgar -, mas agora compreendo porque anda de lá para cá. Talvez, ao passar pelas ruas, oferecendo-se para algum servicinho, assopra um pouco a dor da solidão com lembranças trágicas. Ou, quem sabe, espere encontrar, depois da próxima esquina, em um terreno abandonado, a gruta de Belém, perdida naquele almoço funesto, da qual o Pequenino sorri com ternura igual para pastores e reis.
Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)