Opinião

Duzentos anos de poesia

04/10/2023 | Tempo de leitura: 2 min

Antônio Gonçalves Dias foi "o" cara. Poeta, teatrólogo, jornalista, etnólogo, folclorista, professor, o sujeito atuou em muitas frentes e deixou obra de qualidade na literatura de língua portuguesa. Inspirou colegas ilustres, como Olavo Bilac e Manuel Bandeira. Sua "Canção do exílio" ("Minha terra tem palmeiras/onde canta o sabiá/as aves que aqui gorjeiam/não gorjeiam como lá") é dos poemas mais conhecidos e parodiados em nossa língua. Seus versos a respeito da cultura indígena integram o mosaico de leituras obrigatórias do Romantismo brasileiro. Nascido em Caxias, no Maranhão, em 10 de agosto de 1823, Gonçalves Dias era filho de um comerciante português, branco, e de uma brasileira, mestiça (descendente de negros e indígenas). Teve professor particular na infância, com quem foi alfabetizado. Aos 15 anos, em 1838, sua família manda-o para Portugal, a fim de estudar no Colégio das Artes, em Coimbra, e preparar-se para ingressar na universidade local. Cursa Direito, na tradicional e afamada Universidade de Coimbra. Conhece autores do Romantismo português, como Feliciano de Castilho, Almeida Garrett e Alexandre Herculano - este último vai saudar, em artigo, o lançamento de "Primeiros cantos", livro de estreia de Gonçalves Dias.

De volta ao Brasil, colabora com diversos jornais. Ingressa como professor de latim e de francês no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Seus poemas ganham reconhecimento da crítica e do público. Torna-se um poeta pop, cujos versos atravessam décadas.

Cria indígenas tão fantásticos quanto idealizados, como o pajé de "O canto do piaga", ou o pai e o filho de "I Juca Pirama". O piaga (sacerdote da aldeia indígena) prenuncia a chegada dos colonizadores europeus, que trazem consigo o sofrimento e a destruição("Vem trazer-vos algemas pesadas/Com que a tribo tupi vai gemer/(...) mesmo o piaga inda escravo há de ser"). O velho cego e alquebrado, de "I Juca Pirama", orgulha-se do filho guerreiro que, a fim de demonstrar sua coragem e valor, volta para a aldeia inimiga e combate os adversários ("Sou bravo, sou forte,/Sou filho do Norte;/Meu canto de morte,/ Guerreiros, ouvi."). Ou ainda o guerreiro tamoio que, embalando o filho recém-nascido, vaticina numa vida recheada de desafios um futuro de honradez e destemor: "A vida é combate,/ que os fracos abate/Que os fortes, os bravos/Só pode exaltar".

Na linha do sentimentalismo amoroso, burila um dos melhores exemplos de dor de cotovelo que a literatura em nossa língua conheceu: "Ainda uma vez - adeus". Os versos são inspirados na sua história pessoal. O poeta apaixonara-se pela jovem maranhense Ana Amélia, mas a família da garota não a queria casada com um sujeito mestiço. Racismo escancarado, numa época em que poucos se importavam com isso. Ela se casa com outro. Ele também se casa. Reencontram-se casualmente e ela, acompanhada do marido, finge não reconhecero antigo pretendente. Lamenta-se o poeta: "Enfim te vejo! -- enfim posso/Curvado a teus pés, dizer-te,/Que não cessei de querer-te,/Pesar de quanto sofri".

Bravíssimo Gonçalves Dias, poeta dos grandes.

Fernando Bandini é professor de literatura (fpbandini@terra.com.br)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.