Opinião

Brigadista do cotidiano

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Conheci a moça na adolescência. A primeira impressão que tive dela foi de valentia. Firme nas palavras e atitudes sem perder o olhar molhado de ternura.

Sua história é traçada com obstáculos de diversos tipos. Sua infância desconheço. Imagino contudo que, mais do que boneca, foi forte nela o exercício para combate nisto ou naquilo. Faz-me lembrar a Canção do Tamoio de Gonçalves Dias e em especial os versos da segunda estrofe: "Um dia vivemos! / E o homem que é forte/ Não teme da morte; / Só teme fugir".

Penso que foi com a avó que aprendeu a ser resistente e a não fugir de seu dia a dia. A avó que veio do Nordeste para o Sudeste, com sons e tons indígenas, sem conhecer as letras, ao se perceber enganada por uma proposta que parecia de amor, equilibrou seus pés marcados pela lavoura desde pequenina, libertou-se das angústias tantas e não se perdeu nas ruas e avenidas. Teve o discernimento para verificar onde se encontrava a luz e se distanciou das trevas. Sabedoria não se adquire na escola.

Filhos, netos e bisnetos são agora o sentido de sua vida.

Deserção diante dos problemas é de quem se deixa desfazer até mesmo com os ventos de tempestade. Um dia desses li uma frase de Winston S. Churchill (1874-1965) que é fato: "Medo é uma reação. Coragem é uma decisão".

Recentemente, a moça me ligou assustada para dizer que puseram fogo no mato, ao lado de onde mora e o fogo chegou até no alambrado da casa. A fumaça se espalhou rapidamente e entrou nos cômodos, onde se encontravam o seu bebê e a avó acamada, se convalescendo de uma queda.

Ela, brigadista do cotidiano, por primeiro, enfrentou o fogo com baldes de água e um vizinho veio com a mangueira. Temor imenso que o fogo se alastrasse. Como conseguiria tirar a avó da cama? E uma possível intoxicação da senhorinha e do bebê? Não deixou de agradecer a Deus por tudo terminar bem. Repetindo: "Coragem é uma decisão".

Emocionei-me com sua falta de fôlego para salvar. Seus baldes de água se transformaram em um tanque do corpo de bombeiros.

Às vezes ela é brava, creio que o sangue indígena, herdado da avó, ferve. Jamais, no entanto, na necessidade de socorro, a vi se distanciar.

Quando a avó caiu, antes que voltasse para casa, já foi em busca de uma cama hospitalar. Com a avó já em casa me escreveu: "Nossa, Cris, vou te confessar que tem horas que eu acho que não vou dar conta, sabe, tá difícil, estou com medo porque estão saindo feridas no bumbum dela". Feridas que, quase em seguida, ela mesma, com cuidados tantos, conseguiu curar.

Cazuza escreveu: "Olhe o mundo com a coragem do cego, entenda as palavras com a atenção do surdo, fale com a mão e com os olhos, como fazem os mudos".

O medo dela é de perder pessoas e não coisas.

Ao mesmo tempo que me diz de seus temores, encaminha-me fotos diversas de seu caçula de nove meses - um boneco -, algumas de tênis e jeans.

Clarice Lispector (1920-1977) escreveu: "O medo sempre me guiou para o que eu quero; e, porque eu quero, temo. Muitas vezes foi o medo quem me tomou pela mão e me levou. O medo me leva ao perigo. E tudo o que eu amo é arriscado".

Tenho o maior orgulho de conhecer essa gente que não perde a esperança, mesmo que faltem inúmeras coisas, e a capacidade de olhar o Céu. Amo todos eles.

Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)

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