Muitos cineastas, críticos e pesquisadores concordam: ver um filme é vê-lo mais de uma vez, ou várias vezes. Ou seja, em uma única sessão não damos conta de tudo o que ele tem a oferecer. Sobretudo um grande filme. Uma das mágicas da arte é justamente essa: quando mais vemos, mais encontramos. Nesse sentido, há filmes inesgotáveis.
Claro que há filmes ruins, de baixa qualidade, que não queremos ver de novo. Filmes que esquecemos rapidamente. Mas há casos curiosos em que redescobrimos um filme e passamos a ter outra opinião sobre ele. Quem nunca detonou uma obra e, ao voltar a ela, descobriu que estava "enganado"? Como algo que antes não parecia bom pôde, depois, parecer bom demais? Essa é outra das mágicas da arte - e, claro, detenho-me ao cinema.
Quando vi "Doutor Fantástico", de Stanley Kubrick, pela primeira vez, não entrei no jogo proposto de cara, não vi graça na comédia amarga, na política de salas fechadas, no aspecto em momentos documental casado à ficção e ao absurdo que povoou a Guerra Fria. Torci o nariz. Diferente de outro filme de guerra de Kubrick, "Glória Feita de Sangue", pelo qual fiquei de joelhos logo na primeira vez. Era, não tinha dúvidas, uma obra-prima.
O tempo passa, os filmes são os mesmos. Nós é que mudamos. Hoje, "Doutor Fantástico", acusado por tanta gente de ser datado (nunca entendi isso como um desprestígio), parece-me maravilhoso, original, quase um "documento histórico" de sua época, a primeira metade dos anos 1960. É certo que algum tempo foi necessário para "compreendê-lo" ou, no mínimo, compreender a proposta nada fácil de uma comédia sobre o fim do mundo.
Talvez porque "Doutor Fantástico" ouse mesmo ser a representação de um determinado tempo como farsa. "Gloria Feita de Sangue", ao contrário, hoje me parece mais frágil em alguns quesitos. Talvez porque sua "realidade" denuncie certo mecanismo farsesco, certo tom épico desbotado, certa transparência calculada, à medida que a realidade sob o filtro da farsa escancarada, em "Doutor Fantástico", paradoxalmente nos permita enxergar ainda melhor o que foi a guerra. E o que foram os homens naquele momento, e talvez o que ainda continuem sendo: um bando de idiotas.
O mesmo problema eu tive na minha primeira sessão de "A Doce Vida", de Fellini. Iniciar-se no universo felliniano com esse filme talvez não seja o mais recomendado. Vi a obra-prima de 1960 em cópia acelerada, com 21 ou 22 quadros por segundo. Tudo era muito rápido, sem encanto. Só fui entender isso mais tarde, três ou quatro anos depois, quando vi a cópia na velocidade original, com toda a beleza da fotografia de Otello Martelli. E revi, em cópia da Criterion, em alta definição, recentemente. Continua sendo um de meus favoritos, ao lado de outros do mesmo diretor, como "Oito e Meio" e "Amarcord".
Reconhecer a grandeza de um filme logo na primeira sessão é muito bom. Costumo dizer que, na primeira vez, estamos mais presos à trama, à mensagem, e muitas vezes deixamos escapar detalhes ligados à imagem e que enriquecem a experiência.
Foi só na segunda ou terceira vez, por exemplo, que me dei conta da potência do uso da profundidade de campo no clássico "Os Melhores Anos de Nossas Vidas". Muitas das imagens de fundo, também em foco, casam-se perfeitamente à triste história contada à frente, sobre soldados que retornam da guerra e custam a se reintegrar à sociedade. Muitas sequências passaram a ganhar um novo significado e, de alguma forma, mesmo com a beleza da primeira sessão preservada, aquele não era mais o mesmo filme. Graças a um novo olhar.
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com; (ramaral@jj.com.br)