Opinião

Algumas paixões a gente não explica

01/09/2023 | Tempo de leitura: 3 min

Quando eu era criança acordava ansioso pelo primeiro dia de aula do ano letivo.

Cadernos novos, materiais arrumados e a vontade de fazer diferente aquele ano.

A promessa de estudar mais, a organização com os cadernos. Escrevia com canetas de cores diferentes e grifava os pontos que achava que cairiam na prova.

Admito que com o tempo o zelo ia diminuindo e lá pra agosto a letra era difícil de ler, tudo agora era escrito sem a mescla de cores do início do semestre.

Geralmente preta, de ponta fina.

Sempre fui fascinado por material de papelaria. Lápis de cor, giz de cera e canetas de múltiplas cores. Amava aquele modelo que tinha quatro cores em uma só.

Mas a caneta de ponta fina sempre foi a minha preferida. Sempre achei que a escrita marcava mais no papel, melhor pra ler, deslizava no papel. Era como se meu traço fizesse drift na folha, dando vida aos exercícios de ciências ou aos textos da aula de literatura.

Eu me lembro de um ano, acho que era a sétima série, em que eu pedi ao meu pai pra comprar duas canetas de ponta fina. Ele me perguntou o porquê de duas da mesma cor e eu disse que era porque queria garantir que se uma se perdesse eu ainda teria outra de estepe.

Ele riu, mas consentiu.

Meu pai adorava esse meu fascínio por papelarias, cadernos e grifar frases nos livros de estudo. Acho que ele sempre achou que eu era um garoto mais inteligente por agir assim, sei lá.

A verdade era que meus cadernos tinham desenhos, geralmente de personagens do Dragon Ball, passwords de jogos do Super Nintendo e qualquer outra coisa da minha infância nerd. Mas ele não sabia disso.

Até hoje minha mesa de trabalho é cheia de cadernos, post-it's e lápis e canetas variados. No shopping aqui da cidade tem uma papelaria enorme, é quase como uma Disneylândia pra mim. Uma visita ao parque de diversões.

Uma criança de trinta e três anos que se perde entre cores de marca-texto.

Me sinto um sommelier de tinta de caneta.

"Essa aqui é levemente afinada e com tons de Bic"

Achei que era coisa de escritor, mas não! É coisa da minha cabeça apenas.

Coloquei até na minha bio do Instagram.

Já é marca registrada. Boa parte dos meus livros foram autografados com canetas assim. Em casa tenho umas dez.

Só pra garantir! Só pra manter o vício!

Já ganhei várias canetas, de cores e pontas variadas. Gostei de algumas, mas é que se não for de ponta fina é como se eu traísse minha escrita.

Relacionamento é confiança, fidelidade.

Sou fiel a caneta de ponta fina. E tem que ser preta!

Relacionamento antigo, desde os tempos de colégio. Não dá pra mudar agora.

Não dá e eu nem quero. Alguns textos que foram escritos a mão ganharam vida pela ponta fina de uma dessas canetas.

Em time que está ganhando não se mexe.

Em uma entrevista que participei dia desses até me perguntaram: "Mas por que caneta preta? E de ponta fina?"

Foi difícil responder, é um relacionamento tão antigo que é mais de sentir, difícil explicar.

Eu ganhei uma caneta de presente de um chefe, era uma caneta metálica, veio em uma caixa aveludada, linda!

Guardo ela até hoje, nunca usei.

Ela não é preta e nem tão pouco de ponta fina.

Algumas paixões a gente não explica...

Jefferson Ribeiro é autor e cronista (jeffribeiroescritor@gmail.com)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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