Em novembro do ano passado, chegou na minha casa um pacote no qual eu esperava ansiosamente. Se tratava de "Surrender: 40 músicas, uma história", o livro de memórias de Paul David Hewson - mundialmente conhecido como Bono -, líder do U2.
Diferente do que muitos imaginaram, eu não devorei o livro como um fã faria se seu ídolo máximo lançasse uma autobiografia. Eu estava com tanta vontade de ter aquela conversa com Bono que eu não queria que ela acabasse. E para não acabar, eu não começava.
"Uma hora eu vou ter que ter essa conversa com Deus." Sim, Deus. Pois o livro que estava em minhas mãos, para mim, era a própria bíblia, contendo as quarenta sagradas escrituras de uma das divindades do rock.
Algumas pessoas enxergam exagero na minha devoção pelo Bono. Talvez até seja, mas eu passarei a vida achando essa idolatria extremamente normal. Tive e tenho muitos heróis na vida, mas ele é um super-herói. Me salvou tantas e tantas vezes e ele nem faz ideia disso. Ou faz. Eu não duvido desse cara.
Quando seu livro de memórias foi anunciado eu tremi na base. Meu medo era encontrar no meio de suas páginas um Bono diferente da ideia que fiz dele na minha cabeça durante praticamente toda minha vida. Bom… meu receio estava meio certo.
A Bíblia sagrada - essas que os padres e pastores usam para espalhar o evangelho - tinha uma função clara quando foi montada no Concilio de Nicéia, em 325 d.C., que era de fazer uma bela propaganda de Jesus. Transformar o homem de Nazaré em um Deus encarnado. Já essa Bíblia aqui - o livro do Bono - faz o contrário: mostra como o meu super-herói é apenas um homem do lado norte de Dublin.
Em suas mais de 600 páginas, Bono faz questão de não se levar a sério. Usa quarenta músicas do U2 para ilustrar sua vida pessoal e não teme ao mostrar suas entranhas. E ele não esconde seus defeitos e seu complexo de Messias megalomaníaco.
Falando em Jesus, Deus e Messias, não tem como eu não destacar uma passagem que me marcou muito - e foram muitas. Bono narra seu encontro com o Papa Joao Paulo II. Nesse encontro, o astro do rock usava seus óculos de lentes azuis diante do santo padre que o encarava sem nenhum constrangimento. Bono, por sua vez, ficou mega constrangido e em um ato de humildade, tirou os óculos na presença do Peregrino da Santa Sé que agora olhava fixamente para aquele modelo Dolce Gabanna nas mãos do vocalista. Bono ofereceu os óculos para o bispo de Roma, o Papa, e em troca recebeu o terço pessoal do próprio pontífice.
Essa história é legal por si só, mas para mim tem um sabor adicional. O Bono não é de ficar dando óculos para todo mundo. Pelas minhas pesquisas, além do Joao Paulo II, George W. Bush, o ex-primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe e alguns raríssimos fãs (um em 2005 nos EUA e outro em 2015 na França) eu também ganhei um óculos desse sujeito.
Se ele queria, nas páginas desse livro, se fazer menos divino, pra mim, falhou miseravelmente. O que ele fez com essas memórias compartilhadas foi me aproximar ainda mais do cara que num dia chuvoso de outubro, girou os calcanhares, apontou pra mim, me abençoou e me deu o dia mais feliz da minha existência em forma de um óculos Oliver Peoples Azul - um dia eu conto essa história direito, ela é ótima, afinal eu passei a fazer parte do mesmo clubinho no qual o Papa está: "Clube de seres humanos que ganharam os óculos do Bono".
Voltando ao livro, foi uma conversa que eu não queria que acabasse. Relutei para fazê-la durar. Dei uma pausa na leitura e fui ouvi-lo pessoalmente em seu show solo em Nova York, em maio desse ano: "Deus está contando sua história pra mim acompanhado de um violoncelo". Quando o show acabou, eu queria menos ainda encerrar esse papo.
Mas o fim do diálogo chegou. E foi um diálogo mesmo. Ele me fez sentir sentado numa mesa de bar ouvindo uma das pessoas mais extraordinárias do planeta falar entre um gole e outro uma caneca de Guinness.
Aprendi um bocado com esse papo. Chorei muitas vezes. Ri outras tantas. Mas o final do livro, a última frase dessa sagrada escritura dizia assim: "Obrigado professores da Escola Experimental Mount Tample, sigo sendo aluno de vocês".
Eu sou professor. E acho que você consegue entender agora a minha devoção por esse sujeito.
Conhecimento é conquista.
Felipe Schadt é jornalista, professor e cientista da comunicação (felipeschadt@gmail.com)