Opinião

É isto um homem?

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O autor é um sobrevivente. Escapou com vida de Auschwitz, o campo de extermínio plantado pelos nazistas em território polonês durante a Segunda Guerra Mundial. Chegou lá com 24 anos de idade, em fevereiro de 1944 e saiu em janeiro do ano seguinte, libertado pelo exército soviético. Escreveu, entre 1945 e 1947, "É isto um homem?", suas memórias de Auschwitz. O volume é dos documentos mais preciosos a respeito não só da guerra e dos campos de concentração, como também da condição humana, com nossas avolumadas falhas e escassas virtudes. Lembro de Levi em razão da exposição no Museu do Solar, "Holocausto: para que nunca se negue, para que nunca se esqueça e para que nunca mais se repita", tema de que tratei aqui, em maio último. Na mostra - que ainda dá para ver, pois segue até 6 de agosto -, há painéis com frases do "É isto um homem?". Levi pôde eternizar essa história, e fala pelos milhões silenciados pela morte. A obra relata não somente o dia a dia no campo - o que já é muito -, mas também observa a desumanização de uns e outros. De um lado, os aprisionados, cuja rotina de humilhações, suplícios e aviltamentos acaba retirando deles parte de sua humanidade; do outro lado, os "carcereiros" (militares de todas as patentes, burocratas, médicos...) que, pela falta de empatia e pelo desprezo para com os outros, pela rotina embrutecedora, também se afastam de uma certa "condição humana". A pergunta do título pode dizer respeito a esses dois polos.

Judeu italiano, bacharel em Química pela Universidade de Turim, Levi foi pego por milicianos fascistas. Depois de breve período encarcerado em sua terra natal, seguiu deportado para a Polônia, dentro da "Solução final" executada pelos nazistas a fim de eliminar judeus, ciganos, deficientes físicos, dissidentes em geral e todos os que o arianismo considerava "inferiores". Dos 650 judeus italianos deportados junto com Levi, sobraram três.

O volume tem dezenas de passagens marcantes. Muitas vezes o acaso determinava a sobrevivência. Mostra a rotina de trabalhos extenuantes, a fome onipresente e as condições mínimas para continuar vivo. Imerso no horror, o autor mantém o discernimento para observações agudas, como no exemplo seguinte. Diante de um oficial que o interroga por precisar de gente qualificada para trabalhar, Levi nota que o outro não o considera humano nem digno. Escreve o prisioneiro: "O cérebro que dirigia esses olhos azuis, essas mãos bem cuidadas, dizia: 'Esse algo que está na minha frente pertence a um gênero que, obviamente, convém eliminar'".

Levi teve dificuldades para publicar o livro. Os originais foram recusados por mais de uma editora. Os anos imediatamente seguintes à Grande Guerra também foram de vergonha e de tentativas de esquecimento. Houve quem visse nesse e em relatos semelhantes uma vitimização que repulsava. Nada mais equivocado. Denúncias assim não podem passar despercebidas.

A leitura de "É isto um homem" não é leve, mas torna-se imprescindível. Para que se conheçam testemunhos desse terror. E para que - como lembra a mostra no Solar - nunca se negue nem se repita.

Fernando Bandini é professor de literatura (fpbandini@terra.com.br)

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