Opinião

O drible

12/07/2023 | Tempo de leitura: 3 min

Romance de Sérgio Rodrigues, "O drible" não é um livro a respeito de futebol, mas escala o futebol como um de seus principais personagens. Trata-se de um drama – e que drama! – familiar. Narra a turbulenta relação entre o revisor de textos de autoajuda Murilo Neto com seu pai, o jornalista esportivo Murilo Filho. Entre eles, cinco décadas do futebol brasileiro entram em campo, com seus craques, peladeiros, jornalistas (Nélson Rodrigues e seu irmão, Mário Filho, são personagens, assim como João Saldanha e Millôr Fernandes) e o universo encantador dos gramados e estádios.

Conhecido no passado como o "Leão da crônica esportiva", Murilo Filho é um sujeito egocêntrico e narcisista. Mulherengo, casou-se com Elvira, mãe de Murilo Neto, o narrador da história. O pai passou a vida relacionando-se com belas mulheres. Na velhice, continua um conquistador. O narrador tem péssimas recordações da infância e adolescência, convivendo com um pai violento, sempre disposto a aplicar-lhe surras.

O título do livro refere-se à jogada na Copa do Mundo de 1970, no México, quando Pelé finta sem tocar na bola o goleiro uruguaio Mazurkiewicz, depois de passe açucarado de Tostão. O final da jogada todo mundo conhece, quando o camisa dez desloca o zagueiro com um chute cruzado em que a bola passa rente à trave e não entra. O lance é dos dois mais famosos "quase gols geniais" de Pelé (o outro é o chute do meio da rua contra os tchecos, no jogo de estreia na mesma Copa do Mundo). Murilo Filho estava no México, na cobertura jornalística do evento. No Brasil, a ditadura militar desembestava seu período de maior repressão. O escritor faz confluir a história pessoal do jornalista esportivo com a do Brasil sob a ditadura e seus porões. Uma trama que envolve traição, pusilanimidade e muita desfaçatez.

Se Bento Santiago (também mencionado em "O drible"), protagonista de "Dom Casmurro", de Machado de Assis, entrou na galeria da literatura pela porta do ciúme, Murilo Filho lhe segue os passos. Aos dois junta-se outro Bento, o Amaral, de "O continente", de Érico Veríssimo, preterido por Bibiana Terra, que preferiu o capitão Rodrigo Cambará. Para não os chamar de "cornos ressentidos" (oh, labéu vulgar), vamos dizer que são "tipinhos angustiados pela rejeição". Nesse time de infames, Murilo Filho é páreo duro de vencer. Murilo Neto – que passara duas décadas sem falar com o pai – é procurado para uma reaproximação no final da vida do outro. O pai recolhera-se em sítio da região serrana fluminense. E muitas jogadas inesperadas vão aparecer.

Lançado em 2013, "O drible" é daquelas obras que escala seu autor numa seleção de talentos contemporâneos.  Romance extraordinário no enredo e na fatura, foi premiado com o Portugal Telecom de 2014.       

Sergio Rodrigues nasceu em Muriaé, Minas Gerais, em 1962 e vive no Rio de Janeiro. Jornalista e escritor, mantém coluna na "Folha de S. Paulo" e é roteirista do programa de TV "Conversa com Bial". Dentre seus títulos, destacam-se os contos de "A visita de João Gilberto aos Novos Baianos" e o ensaio a respeito do idioma "Viva a língua brasileira".

Fernando Bandini é professor de literatura (fpbandini@terra.com.br)

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1 COMENTÁRIOS

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  • Alex Mattiazzi de Freitas Bueno
    14/07/2023
    Muito bom