A moça conheci na barriga materna. A doença da mãe se revelou no seu nascimento. Recordo-me de suas lágrimas ao saber que transmitira à filha a doença que ignorava. Naquela época, o tratamento era ineficaz. Jamais vi a mãe chorar por si mesma. Condenava-se a toda hora. Dizia-me que a pequenina não merecia carregar o resultado de seus descaminhos. Pranteava pelas duas.
A mãe era de cuidados extremos com sua bebê que, nos primeiros anos, apresentou alguns problemas decorrentes da enfermidade. Seis anos depois, contudo, a moléstia encerrou as cantigas de ninar. Integrava a Pastoral da Mulher/Magdala. Foi das quatro primeiras que comoveram Dom Roberto, ao passarem em frente à Catedral, e o fizeram decidir por essa Pastoral, em 1982, na Diocese. Chegou à reunião um pouco tímida, mas com olhar de busca além da fumaça que a fazia sonhar por instantes.
Pouco tempo antes de partir, creio que pressentindo o término das forças físicas, pediu-me que entregasse os filhos ao Juiz de Menores e solicitasse que fossem adotados juntos. A tia, de coração com ninho que se multiplica, indeferiu. Sangue seu ficaria com ela. Cresceria junto com o seus. Foi dessa forma.
Lembro-me da rosa em meio de recortes de papel verde de dobradura, em forma de matinho, que a menina colocou no caixão da mãe, identificando como canteiro seu para plantar no jardim do Céu.
A mãe era temente a Deus, sabia da Eternidade e os ensinava sobre o que ouvia nas reuniões da Pastoral.
A menina se tornou jovem de certa forma rebelde. Suas escolhas não coincidiam com as normas da casa. Desejava voar, mas suas asas frágeis pressupunham quedas. Saiu de casa como afronta, mas sem perder os laços de ternura que mantiveram sua história.
Em meio a trombadas, junto com um trecheiro, chegou a outro estado, no qual se encontra. Para o seu jeito de ser, deu-se bem lá. Teve a primeira filha, que ficou em um abrigo pela impossibilidade de cuidar. Visitava-a todas as semanas. Seguindo os protocolos da adoção, a tia trouxe a sobrinha-neta com ela. A moça quis ficar. Tinha certeza que a filha seria muito bem cuidada.
Com outro companheiro, nasceu a segunda filha. Hoje evoluíram os cuidados para que a mãe não transmitisse a doença aos filhos. As duas são saudáveis. O pai da criança, que possui um pouco mais de estrutura, ficou com a criança. A mãe desinteressou-se dele. Separaram. Cada um deve ter suas razões.
Voltou para as ruas. Continua, creio eu, à procura do que perdeu ao se despedir da mãe ou do jardinzinho que enviou ao Céu na manhã chuvosa do adeus. Quem o regaria? O Senhor do Bonfim?
Na capital em que mora, atualmente conhece bem onde procurar ajuda nos momentos complicados e não deixa de tomar os remédios precisos. Entende-se com os moradores de rua.
Há dois meses, apareceu em meio a eles um estranho de olhar feroz. Atacou-a numa madrugada, a estuprando. Comunicou o ambulatório em que se trata. Está grávida. Encaminharam-na para o aborto.
Chegou até o hospital e foi embora depressa. Escreveu para a tia sobre a gravidez e a possibilidade do aborto. "É uma vida", disse ela. "Não tenho o direito de interrompê-la. Deus já olha para ela". Conseguiu quem irá criar a criança.
Emocionei-me ao ler. Reverência pela vida. Toda vida importa.
Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)