Opinião

Cinema surrealista

22/06/2023 | Tempo de leitura: 3 min

Há filmes que, de tão ousados, tão originais, terminam por nos confundir. "O que acabei de ver?", questionamos ao fim da sessão. Mesmo os cinéfilos mais calejados já foram atacados por essa sensação. Nesse caso, o estranhamento não tem a ver com algo negativo; ao contrário, ajuda a expandir nosso olhar. O desafio instiga, faz pensar.

É comum esse tipo de reação ao assistirmos a filmes surrealistas. Vi um recentemente e fiquei por horas pensando na experiência. Chama-se "Zigeunerweisen" e foi dirigido pelo diretor Seijun Suzuki. Tenho visto alguns de seus filmes nas últimas semanas e, a cada nova obra, novas surpresas. São filmes complexos, violentos, com imagens desconcertantes.

Suzuki é mais lembrado por seus filmes de Yakuza dos anos 1960. "Zigeunerweisen" foi feito no início dos anos 1980. Seu título é retirado de uma composição musical de Pablo de Sarasate, cujo disco é ouvido por diferentes personagens ao longo do filme. Explicar a realização de Suzuki é um tanto complexo: dois homens, dois amigos muito diferentes; um é casado e pacato, o outro casa-se depois e é desajustado, caminha pelo mundo, quase é preso; algumas mortes e a presença de três cegos - dois homens e uma mulher - ainda compõem esse filme repleto de situações estranhas e um pouco de gastronomia japonesa.

O impacto de suas imagens permaneceram em mim. No cinema surrealista, importa menos a compreensão de uma possível história. Recusa-se a consciência. Todo filme surrealista tende a bagunçar os signos, explorar representações, impor desejos estranhos porque pertencem aos nossos espaços mais profundos: os nossos sonhos.

O filme surrealista mais famoso de todos os tempos ainda é "Um Cão Andaluz", um curta-metragem seminal de 1928 dirigido por Luis Buñuel e escrito em parceria com Salvador Dalí. À época, Buñuel e Dalí trafegavam na órbita dos surrealistas de Paris, na França, então a capital do pensar artístico. O surrealismo estendia-se a outras artes. "Embora os surrealistas não se considerassem terroristas, eles estavam constantemente combatendo uma sociedade que desdenhavam", escreveu Buñuel em sua autobiografia, "Meu Último Suspiro". A arma, para quem vivia a arte na pele, era o escândalo.

"Um Cão Andaluz" fala de nada e de tudo: apresenta um variado leque de situações sem qualquer sentido, como burros mortos sobre um piano, formigas atravessando uma mão, duas estátuas aparentemente vivas e, entre outras, a tão famosa cena em que uma navalha corta um olho e, em seguida, uma nuvem "corta" a lua. A regra, para atingir o escândalo, é explorar o irracional. Um cinema de sensações, no qual buscar um sentido é inútil.

Em um ensaio, o crítico Roger Ebert lembra que o filme surgiu da narração de sonhos compartilhada entre Buñuel e Dalí. O primeiro sonhou com o corte do globo ocular, o segundo com a mão cheia de formigas. O resultado foi a realização de um filme de pouquíssimos recursos, com apenas 17 minutos. E lá se vão quase 100 anos influenciado os mais diferentes diretores, entre eles David Lynch.

Em sua autobiografia, Buñuel relembra uma história curiosa envolvendo "Um Cão Andaluz". Em sua estreia, o diretor ficou postado atrás da tela, com os bolsos cheios de pedra, caso os espectadores recusassem a obra e houvesse confusão. "Minhas pedras não foram necessárias", relatou o cineasta, que, mais tarde, voltaria ao surrealismo em filmes como "O Discreto Charme da Burguesia" e "O Fantasma da Liberdade". Em sua estreia, "Um Cão Andaluz" foi um sucesso, com aplausos do público que viu nascer um filme histórico.

 

Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista; escreve em palavrasdecinema.com (ramaral@jj.com.br)

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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