Opinião

Elegia de Vinícius para o pai

31/05/2023 | Tempo de leitura: 3 min

"A morte chegou pelo interurbano em longas espirais metálicas./Era de madrugada. Ouvi a voz de minha mãe, viúva./De repente, não tinha pai." Assim começa "Elegia na morte de Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, poeta e cidadão", escrito por Vinícius de Moraes. O poema, gigante na extensão e beleza, é obra nem sempre lembrada do autor carioca, mas na qual vale a pena debruçar. O ano era 1950, e o diplomata Vinícius trabalhava como secretário no consulado brasileiro em Los Angeles, nos Estados Unidos. Em 30 de julho, o poeta recebe o telefonema de sua mãe Lídia, contanto da morte de Clodoaldo. "No escuro de minha casa em Los Angeles procurei recompor tua lembrança/Depois de tanta ausência. Fragmentos da infância boiaram no mar de minhas lágrimas." E o pai que ele evoca é uma figura carinhosa e paciente, amoroso com os filhos. "Vi-me eu menino correndo ao teu encontro." A família morava, quando da infância do poeta, na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. Essas referências à ilha e à infância são recorrentes, como na canção "O poeta aprendiz", em parceria com Toquinho: "Ele era um menino, valente e caprino, um pequeno infante, sadio e grimpante". Mas volto ao pai e à elegia: "Entravas a casa humilde./A um gesto do mar, a noite se fechava sobre o grupo familial como uma grande porta espessa."

Clodoaldo era um poeta bissexto, funcionário público, preterido em promoções. O pai escreveu versos para cada um dos filhos e não muito mais que isso. Na elegia, diz o eu lírico: "Teus ombros possantes se curvavam como ao peso da enorme poesia que não realizaste." Mas mesmo não tendo escrito tanto, o filho poeta reconhece no pai aquele que lhe deixou tesouro precioso: "Deste-nos pobreza e amor. A mim me deste/A suprema pobreza: o dom da poesia, e a capacidade de amar/Em silêncio".

Numa literatura nem sempre farta de progenitores exemplares (ou modelos inspiradores), Vinícius junta-se ao escritor Carlos Heitor Cony, que em seu romance "Quase memória" constrói uma bela homenagem ao pai. Escreve Vinícius a Clodoaldo: "Diante de ti homem não sou, não quero ser. És pai do menino que eu fui. (...) Teu olhar vinha de longe, das cavernas imensas do teu amor, aflito/Como a querer defender. Vias-me e sossegavas".

Próximo do fim do poema, aparece uma sequência de beleza ímpar: "Tua morte, como todas, foi simples./É coisa simples a morte. Dói, depois sossega. Quando sossegou - lembro-me a manhã raiava em minha casa - já te havia eu/Recuperado totalmente: tal como te encontras agora, vestido de mim." Vinícius relembra a linhagem dos Moraes a seguir: "Em mim geraste o Tempo: aí tens meu filho, e a certeza/De que, ainda obscura, a minha morte dá-lhe vida/Em prosseguimento à tua; aí tens meu filho/E a certeza de que lutarei por ele (...) Deste-lhe, em tua digna humildade, um caminho: o meu caminho. Marcha ele para um mundo em paz: o teu mundo - o único em que soubeste viver; aquele que, entre lágrimas, cantos e martírios, realizaste à tua volta". O texto completo pode ser lido em qualquer "Antologia poética" de Vinícius. Saravá, Poetinha.

Fernando Bandini é professor de Literatura (fpbandini@terra.com.br)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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