Todas as vezes que ouço a palavra guitarra ou seu som me vem a música: "Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones/ Girava o mundo sempre a cantar as coisas lindas da América/ Não era belo mas mesmo assim havia mil garotas a fim. / Cantava Help and Ticket to ride, oh! Lady Jane and Yesterday/ Cantava viva à liberdade, mas uma carta sem esperar/ a sua guitarra o separou, fora chamado na América. / Stop! Com Rolling Stones, stop! com Beatles songs./ Mandado foi ao Vietnã, lutar com vietcongs./Tatá-ratatá...
Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones/ Girava o mundo mas acabou, fazendo a guerra do Vietnã/ Cabelos longos não usa mais, não toca a sua guitarra e sim/ Um instrumento que sempre dá a mesma nota ra-tá-tá-tá/ Não tem amigos, não vê garotas, só gente morta caída ao chão/ Ao seu país não voltará, pois está morto no Vietnã./ Stop! Com Rolling Stones, stop! com Beatles songs/ No peito um coração não há, mas duas medalhas sim. / Tatá-ratatá..."
A canção "Era um Garoto..." foi composta pelos italianos Franco Migliacci e Mauro Lusini, e gravada pelo cantor Gianni Morandi em 1966. A primeira versão brasileira é de Brancato Jr. e foi gravada em 1967 pela banda Os Incríveis. Eu acabara de entrar na adolescência e a dor dessa música sangrava e ainda sangra no meu coração. Declara o absurdo das guerras de todos os tipos e da música que se tornou menor na ausência de quem tocava a sua guitarra.
Minha querida amiga Silvinha - Sílvia Cristina Teotonio da Silva - me contou uma história da família dela que também diz de guitarra. Um de seus irmãos partiu cedo, quando ela era ainda menina. Não chegou a três décadas de história. Ficou, além de incontáveis lembranças, a sua guitarra, que o fazia evocar a banda americana de rock Bon Jovi cantando "Always".
"You're in my head/ Always, Always..." ("Você está sempre na minha cabeça/ Sempre, sempre, sempre...")
O irmão caçula, o advogado Dr. Glauco Henrique Teotonio da Silva, se encontrava com seis anos na época. Aquele que foi para Deus, no entanto, era tão intenso que permaneceu nele. Mandou consertar a guitarra.
"You're in my head/ Always, Always..."
Escreveu: "Sobre Herança. Nem sempre a 'herança' é algo valioso, que valha fortuna ou seja um bem material sofisticado. Às vezes, ou melhor, na sua grande maioria, é algo pessoal, sentimental que vem da alma. E sobre alma, quanto a isso eu posso dizer: esse instrumento tem. É um objeto valiosíssimo, não pelo seu valor real mas sim pelo seu significado. (...) E ficou anos guardada, se desfazendo, perdendo peças, mas nunca, nunca perdeu a alma, a essência que lhe é peculiar. Fiz questão de reformar, e com certeza o valor gasto daria para comprar duas novas, mas novamente pouco importa. O que importa é sua alma, sua história e seu legado. Sobre Herança: essa foi a única e talvez a mais valiosa deixada por você, meu irmão. E não, não tem preço. Esse tesouro está comigo, e ninguém me tira. Sobre Herança. Sobre alma. Sobre lembranças. Ah, mais ainda, sobre Saudades!".
Tão da sensibilidade que salva tudo isso! A guitarra se encontra na parede da sala em um móvel especial.
O solo de guitarra, que passou a acontecer no Céu a partir dele, ecoa também no coração dos seus até o reencontro.
Maria Cristina Castilho de Andrade professora e cronista (criscast@terra.com.br)