Romance pouco comentado de Machado de Assis, "Casa velha" apareceu em folhetim publicado entre 1885 e 1886, na revista carioca "A Estação". A obra foi composta bem antes, sem data precisa, de acordo com a ensaísta e crítica literária Lúcia Miguel-Pereira (1901/1959). Foi Lúcia Miguel, por sinal, quem resgatou o romance, quando procurava textos avulsos de Machado em periódicos do século 19. (Lúcia Miguel tem uma biografia, escrita por Fábio Coutinho, lançada em 2017 e hoje fora de catálogo. A cultura brasileira deve muito a gente como Lúcia, Capistrano de Abreu, Paulo Rónai, Sérgio Milliet e tantos outros que, com o tempo, são deixados de lado. Faltam bibliotecas públicas com qualquer nome e sobram praças e avenidas para os Florianos, Deodoros, Garrastazus e caterva.)
De volta. "Casa Velha" deve ter sido lançada para saldar algum compromisso editorial do escritor. Uma história sentimental, próxima de seus primeiros romances, como "A mão e a luva" e "Helena". Mas não menos importante. E foi o crítico inglês John Gledson, apaixonado leitor e estudioso de Machado, quem levantou o aspecto histórico dessa narrativa, ambientada em 1839, durante a regência de Araújo Lima. Gledson inventaria que o escritor carioca sempre fez considerações políticas e históricas, ambientando seus enredos em período explicitado, com observações pontuais bem específicas (quem comandava o gabinete de ministros, qual conflagração havia estourado, que lei se discutia no Parlamento...). "Casa velha", na edição da Garnier, traz o estudo de Gledson e a introdução de Lúcia Miguel.
Nesse romance, o narrador é um padre, cujo nome não aparece. Ele passa a frequentar a tal "casa velha" - na verdade um palacete comandado pela mão de ferro de dona Antônia, matriarca zelosa de sua ascendência fidalga. Viúva de um ex-ministro e conselheiro do imperador Pedro I, dona Antônia vive com o filho único, Félix. Na casa, mora também a agregada Cláudia, a Lalau, garota alegre e muito inteligente, da mesma idade de Félix. O padre narrador foi apresentado à matriarca por um colega que celebrava missas no local. Seu intuito é o de escrever uma história do primeiro reinado, e a biblioteca do marido de Antônia aparece como fonte preciosa de pesquisa. Anuência dada, o pesquisador visita quase que diariamente o lugar. Ganha a confiança e a simpatia de todos. Começa a nutrir uma grande afeição por Lalau. Mas a seção dos spoilers encerra suas atividades por aqui.
Quem quiser que vá conferir essa bela história machadiana, em que não faltam personagens e situações que o genial escritor vai desenvolver em outras narrativas. Lalau pode ser um embrião de Helena, do romance homônimo, ou da Capitu, de "Dom Casmurro". A ascensão social via casamento e a briga de faca entre o amor e as convenções sociais estão entre os temas machadianos exibidos em "Casa velha". Assim como o vale-tudo impresso no berço dos bem-nascidos, garantia de uma vida em que todas as oportunidades lhes são conferidas. As sutilezas de estilo e a linguagem esmerada do grande autor estão lá. Como certamente vai estar lá a satisfação do leitor.
Fernando Bandini é professor de Literatura (fpbandini@terra.com.br)