Opinião

Amigo é para se guardar

16/03/2023 | Tempo de leitura: 3 min

Amigo é coisa para se guardar a sete chaves, dentro do peito. Era o que dizia Milton Nascimento na "Canção da América". Conhece-se muita gente. O ser humano é naturalmente gregário. Ninguém consegue viver sozinho. Mas amigo de verdade, esse é um tesouro de valor incalculável, raro e praticamente em extinção.

A psicanálise tem condições de explicar racionalmente o que deveria ser uma amizade real. Por isso é que o psicanalista Jean-Bertrand Pontalis (1924-2013), quando indagado o que é um amigo, respondeu que amizade verdadeira só existiria em fábula de La Fontaine. Mas a melhor síntese "é que um amigo de verdade é aquele que nos protege dos tormentos do amor, nos afasta da fúria raivosa, faz recuar a morte".

Todos têm sede de amizade. Sede mais intensa na adolescência, quando é necessário repartir as primeiras sensações adultas. É raro que "o melhor amigo" da adolescência continue a ser o melhor amigo na maturidade. E todos também já sentimos o fenômeno amorável de "descobrir amigos de infância" em contatos tardios, quando já completamos a nossa jornada de aquisições amistosas.

Para Pontalis, é possível conviver bem apenas com colegas ou camaradas. "Coleguismo e camaradagem são formas de amizade que, se não nos fazem sentir mais fortes, mais vivos - é isso que quero dizer com 'recuar a morte' - ao menos afastam um pouco a solidão amarga".

A amizade pode ter crises. Quantas amizades são desfeitas por questões sérias ou por banalidades. Quantas vezes nos enganamos? Afeiçoamo-nos a pessoas que se aproximam de nós por diversas motivações. Ao desaparecer a causa dessa chegança, desaparecem aos poucos ou até bruscamente. A decepção é dolorida, porque investimos aquilo que é mais nosso - o sentimento do amor desinteressado - em seres humanos incapazes de reconhecer o valor contido nesse intangível patrimônio do afeto.

Marcel Proust era um intelectual que não acreditava na amizade, embora sua narrativa na obra "Em busca do tempo perdido" possa sugerir que ele colecionou incontáveis amigos. Para ele, a amizade requer um "eu superficial", insuscetível de ser interpretado pelo "eu profundo".

Aprecio muito um conto de Oscar Wilde sobre a "amizade" entre o jardineiro e o moleiro. Este, propalando ser o melhor amigo do ingênuo cultivador de flores, exigia dele contínuas demonstrações de amizade, a ponto de prejudicá-lo até à morte. Existe muito disso, que não é amizade. É interesse, é adulação com objetivos muito definidos de parte de quem bajula para se beneficiar, servindo-se do argumento falacioso da amizade.

Amizade é mais constante do que o amor. Amor pressupõe paixão, ardor, flama que esmaece com o tempo. A única exceção estaria no amor místico. Tereza D'Ávila, que Lygia Fagundes Telles chamava "a Terezona", em cotejo com a santinha de Lisieux, dizia que "tudo passa, só Deus não passa". E o Evangelho de João chama simplesmente Deus de "amor".

Amor tem a pretensão de alcançar a plenitude, algo que a amizade não almeja. A um amigo não se deve dizer tudo. Às vezes, a franqueza desfaz a amizade. É preciso ser um espírito superior para aceitar críticas. Estas podem ser encaradas como inveja, como despeito, como ciúme ou qualquer outro sentimento inferior.

Tenho a veleidade de considerar amigos, seres humanos para os quais devoto afeição ao meu modo: imperfeito, incompleto, contido. Mas é como consigo vivenciar essa experiência maravilhosa de considerar "família escolhida", aquela que não é de sangue, mas alicerçada no sentimento amorável.

José Renato Nalini é diretor-geral de universidade, docente de pós-graduação e Secretário-Geral da Academia Paulista de Letras (jose-nalini@uol.com.br)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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