Opinião

Viestes a mim?

02/03/2023 | Tempo de leitura: 3 min

Os cristãos deveriam estar mais atentos à substância dos Evangelhos do que no cultivo de idiossincrasias e preconceitos. A humanidade aparenta progredir, consegue tentos quanto à longevidade, avança na ciência e sua serva, a tecnologia, oferece vantagens em todas as áreas. Mas a consciência parece condenada a permanecer refém da pequenez. Ainda é mesquinha a mente de muitos os que se dizem cristãos.

Façamos um exame de consciência e nos indaguemos se de fato observamos aquilo que Jesus afirmou em Mateus, 25,31-46: "...tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes; nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim". Ele explicitou que isso deveria ser feito não a Ele, mas a quem precisasse: "todas as vezes que fizestes isso a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes".

Ora, estamos num país em que trinta e três milhões de semelhantes passam fome. A incúria do Estado, a má política profissional, mergulhada na obsessão do enriquecimento apenas para quem dela participa, o egoísmo disseminado na sociedade, produzem tragédias anunciadas. Morrem inocentes, sempre os miseráveis, os que sobrevivem precisam de quase tudo.

Refugiados de todo o mundo e desvalidos conterrâneos nem sempre encontram abrigo ou proteção. Doentes e idosos curtem solidão e abandono, sem que ninguém os visite. E os encarcerados, então?

Predomina em nossa Pátria a pútrida ideia de que "bandido bom é bandido morto". Que o armamento para os "homens de bem" afugentará os criminosos. Quem está na cadeia é porque merece.

Quais as chances que se concedem a quem caiu nas malhas da Justiça criminal? Justiça tanta vez impiedosa, que não raro se orgulha de dizer que sua ementa preferida é: "ao inocente a pena mínima". Embora a Constituição proclame que o preso não perderá sua dignidade e a reinserção constitua dever estatal, o que se faz por esses nossos irmãos?

Enquanto isso, nos preocupamos é com a vida alheia, não para mitigar seus males, mas para execrar aquilo que consideramos defeito. O exercício da maledicência é um esporte que, no Brasil, só perde para a litigância judicial. O esporte tupiniquim não é mais o futebol. É entrar em juízo. Demandar, processar, pleitear. Alguma coisa sempre se ganha.

Somos perfeitos, "graças a Deus", como dizia o fariseu a bater no peito, enquanto o excluído só dizia "Senhor, eu não sou digno!".

Na prática do diz-que-diz ninguém sobra. Experimente-se falar bem de alguém. A conversa logo morre. Ao contrário, se levantar alguma suspeita, se encontrar algo de fétido na história do outro, então o tema vai render. E vai se propagar rapidamente.

Nem os pastores saem incólumes. O próprio rebanho condena ligações que considera perigosas. Totalmente esquecido de que o próprio Cristo não procurou os santos, os incorruptos, os eremitas, os taumaturgos. Ele conviveu exatamente com quem mais precisava Dele.

Antes de criticar, quase sempre levianamente, como se fôssemos o mais isento e puro tribunal, pois acusamos, julgamos e condenamos, sem ao menos ouvir o acusado, sejamos humildes e respondamos: temos sido responsáveis por nossa opção, somos verdadeiramente cristãos?

É justo sequer beneficiar a vítima da maledicência com o benefício da dúvida? De que lado estaremos quando o Rei tiver de escolher entre as ovelhas e os bodes?

José Renato Nalini é diretor-geral de universidade, docente de pós-graduação e Secretário-Geral da Academia Paulista de Letras (jose-nalini@uol.com.br)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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