Opinião

Ao longe, tudo é perfeito

19/02/2023 | Tempo de leitura: 3 min

Nossa imaginação costuma fantasiar a vida alheia, principalmente de personagens que só conhecemos à distância. Idealizamos a vida de artistas, de personalidades que parecem felizes e nos transmitem o ideal de uma existência liberada de dificuldades.

Nem tudo é o que parece. Todo humano encontra vicissitudes. Não é por acaso que a sabedoria popular chama a efêmera e frágil existência dos racionais pelo planeta de "peregrinação". A viagem inclui perdas, sacrifícios, sofrimentos. Aquela situação de "felicidade completa" é ilusória e só pode ser falaciosa. Quem não absorve essa realidade inafastável, vive em contínua frustração.

Nada como ler biografias e autobiografias, embora estas tendam à autoindulgência e à natural edulcoração da própria vida. Leio todas as biografias que posso, inclusive recomendando aos meus filhos e íntimos: é a possibilidade única de perscrutar consciências com as quais nunca terei contato pessoal. Até porque, muitas delas são de seres que já deixaram esta etapa terrena. Sempre encontro algo que sirva para a minha existência.

Terminei de ler a autobiografia de Matthew Perry, o Chandler da série "Friends". Esta série americana foi viciante em suas inúmeras temporadas. No livro "Amigos, Amores e Aquela Coisa Terrível", publicado pela editora Bestseller, Mathew Perry narra, com rara sinceridade, as suas desventuras. E não foram poucas.

Quem imaginaria que ele é filho de um casamento fracassado. A mãe, linda moça que foi Rainha do Inverno das Universidades Canadenses, apaixonou-se pelo vocalista de uma banda chamada "Serendipity Singers". É evidente que o casamento naufragou. Ficou com a mãe e uma viagem de avião para visitar o pai nos Estados Unidos o marcou: usava um crachá que dizia "menor desacompanhado". A sensação de abandono o acompanhou pela vida afora.

A mãe conseguiu superar o trauma do casamento desfeito e se tornou assessora do famoso Primeiro Ministro canadense Pierre Trudeau. O filho entregou-se às drogas. Viciou-se em analgésico à base de opioides e, ao gravar a sétima temporada de "Friends", estava internado em clínica de recuperação. Tomava cinquenta e cinco comprimidos por dia.

Para gravar a cena de seu casamento com Monica, interpretada por Courteney Cox, veio da clínica acompanhado por cuidador e voltou para lá, horas depois.

Embora o livro possa ser lido como autoajuda – designação com a qual não concordo, pois qualquer livro deve ajudar a nossa cabeça; se não for para isso, para que lê-lo? – tem substância. Perry escreve muito bem, seu senso de humor é formidável e não insiste em autopiedade.

O "Chandler", que tantos entusiastas de "Friends" aprenderam a estimar, é – na verdade – um sobrevivente. Além do vício com opioides, teve de permanecer internado durante meio ano por causa de um rompimento no cólon. Passou por catorze cirurgias. Submeteu-se a mais de sessenta e cinco desintoxicações, a primeira aos vinte e seis anos.

Gastou mais de sete milhões de dólares na tentativa de se manter sóbrio e não depender mais das drogas. Frequentou seis mil reuniões do Alcoólatras Anônimos, esteve em mais de quinze clínicas de reabilitação diferentes, foi compulsoriamente internado em hospital psiquiátrico e passou mais de trinta nãos fazendo terapia duas vezes por semana.

Mas nunca se afastou de Deus. Textualmente, afirma: "Deus tinha me dado um vislumbre de como a vida poderia ser. Ele me salvou naquele dia, e em todos os outros, na verdade. Ele me transformou em alguém que busca não apenas a sobriedade e a verdade, mas também por Ele".

José Renato Nalini é diretor-geral de universidade, docente de pós-graduação e Secretário-Geral da Academia Paulista de Letras (jose-nalini@uol.com.br)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.