Coreografia do adeus

25/01/2023 | Tempo de leitura: 3 min

"Pequena coreografia do adeus", de Aline Bei, é um romance estranho e fascinante. A estranheza aparece pelo inusitado da forma, em que as frases despontam como versos recheados de interrupções. O fascínio decorre do lirismo aparentemente inesgotável da autora, disposta a escavar o poético no que se apresenta banal e cotidiano.

Uma jovem escritora muito talentosa essa Aline Bei, nascida em 1987, na cidade de São Paulo. Em entrevista, ela conta que em sua casa não havia livros e que o gosto pela leitura foi despertado na escola. Na adolescência, foi fazer aulas de teatro.

Mas o que seria uma atividade recreativa transformou-se em paixão e possibilidade profissional: por que não seguir caminho como atriz? Ante a resistência dos pais, ela resolveu cursar Letras. O teatro ampliara seu gosto pela leitura. Formou-se pela PUC de São Paulo. Escrevia "suas coisas", até ingressar na oficina literária de Marcelino Freire, voltada a trabalhar com novos talentos.

Escritor respeitado, Freire incentivou Aline a publicar sua prosa marcante, engenhosa e muito particular. Saiu daí seu primeiro livro, pela editora Nós, "O peso do pássaro morto", publicado em 2017, ganhador do Prêmio São Paulo de Literatura, obra da qual trato em outra ocasião. Volto à "Pequena coreografia..."

Esse seu segundo romance, agora pela Companhia das Letras, conta a história de Júlia Terra. São dois momentos na vida dessa mulher. O primeiro, passado na infância e adolescência da garota. O segundo mostra Júlia como uma jovem adulta. Na casa da infância, ela vive com a mãe, Vera, mulher separada do marido a quem idolatra. Do pai, Sergio, Júlia se recorda de senti-lo enroscado a um casamento que acabara há tempos e que o transformara num marido monossilábico e num pai ausente.

Nunca refeita da separação, Vera despeja sobre a filha sua fragilidade. Uma história comum, de uma família fraturada. E aí entra o engenho da autora. O leitor acompanha o crescimento dessa menina -- sua passagem turbulenta pela escola, a saída de casa, o primeiro trampo, o primeiro amor -- por meio de uma prosa poética vigorosa, desenhada em estilo fluente e peculiar: "uma conversa em família/nunca foi possível, não na minha casa/ lá somos três solitários irreversíveis/gravemente feridos da guerra que travamos contra nós (...) Somos ruína e pó./ Nosso jeito de conversar, diretora, é nos machucando./ não por mal, não somos maus/somos tristes e isso é o que fazemos com a nossa solidão (...)".

A vida adulta carrega seus perrengues mas muitos projetos. Júlia conhece gente, apaixona-se. E escreve: "As pessoas começaram a depositar moedas na folha de Ed, começaram a se aproximar e a olhar para o rosto da música que ele estava cantando. No fundo, toda gente só queria mesmo era suspender o tempo, e por que não? Voar um pouco, esse poder de gelo e asa que arte sempre tem".

O talento de Aline desdobra-se ainda pela capacidade de criar diálogos e de observar pessoas, olhando-as pelo avesso. A começar pelo título, este é um livro bonito demais. Daqueles que permanecem para bem depois da última página.

Fernando Pellegrini Bandini é professor de Literatura (fpbandini@terra.com.br)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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