Refugiar-se no passado

15/01/2023 | Tempo de leitura: 3 min

À medida que o tempo avança, a recordar que não é mais aquele crédito inesgotável que se pode desperdiçar, mais reencontro abrigo no passado. Vivi bastante e intensamente. Só posso manifestar gratidão por tudo o que me foi propiciado.

Na releitura de "Amor a Roma", de Afonso Arinos de Melo Franco, detecto um trecho que se me aplica: "Nos momentos de fadiga desta longa caminhada, o melhor repouso é a lembrança das suas horas douradas. A recordação é uma espécie de reencarnação espiritual, uma nova receptividade do espírito para o amor juvenil, que é promessa e não dádiva, que é encanto e espanto e não julgamento e escolha. Na vida, como na natureza, os frutos se colhem no outono".

Assim me sinto agora. Podendo recordar o carinho recebido de minha avó materna, que adorava o primeiro neto. Meus pais zelosos, empenhados na minha formação. Estimulando-me para a leitura, que se tornou um hábito quase-vício! Leio continuamente e com sofreguidão. Se algo me preocupa, é saber que não terei tempo para ler todos os livros que gostaria.

Tios amorosos, irmãos fabulosos. Primos com os quais brinquei bastante. Colegas de escola que conservei para a vida. Com o risco de excluir alguém, posso mencionar Ernestinho Chiorlin e Orlando de Jesus Moreira como amigos desde o primeiro ano do curso primário, na Escola Paroquial Francisco Telles. A turma unida do Divino Salvador, onde passei o período mais feliz de minha adolescência.

Pessoas que me incentivaram a encetar a jornada de permanente aprimoramento. Observar o recado socrático: "Só sei que nada sei". Lugar reservado para Jacyro Martinasso, João Fernandes Gimenes Molina, Ademércio Lourenção, Walmor Barbosa Martins. A experiência em disciplina junto ao Departamento Pessoal da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, cujo chefe me chamava em 1966 para dizer que o estudo era incompatível com o trabalho. Se eu não estivesse contente com a carreira de ferroviário, que me exonerasse. Eu a resistir, embora contasse com a lei que permitia o estudo e favorecia com horário especial.

Para me desanimar, ele me deixava sozinho, das 17 às 20, digitando os enormes quadros de diferenças salariais para instruir as reclamações trabalhistas. Era um trabalho a ser feito por dois funcionários: um "cantava" as importâncias, todas com vários algarismos e o outro "datilografava". Usava-se a máquina Olivetti cujo carro era maior do que um metro, pois o impresso precisaria conter os dados de doze meses, de vários anos.

Resisti. Datilografei sozinho esses quadros e agradeço ao rústico chefe. Tornei-me bom digitador. O que me facilitou ingressar no mundo mágico do jornal diário.

Duas lições desse período: o que o Estado faz, é sempre inferior à qualidade da iniciativa privada. A expropriação das ações da Companhia Paulista de Estradas de Ferro converteu a melhor ferrovia do Brasil em uma indústria de reclamações trabalhistas. Segundo: a Providência atua em favor de quem está de boa-fé: Lincoln Carvalho Soares assumiu a Diretoria de Pessoal e convocou o único servidor que estudava direito para ser seu auxiliar. E ali me ajudou a estudar melhor, até que Walmor Barbosa Martins me chamasse para a sua gestão na Prefeitura, de 1969 a 1972.

É muito enternecedor revisitar essa parte de minha vida.

José Renato Nalini é docente de pós-graduação, Secretário-Geral da Academia Paulista de Letras e autor de "Ética Geral e Profissional" (jose-nalini@uol.com.br) 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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