A história que não virou

05/01/2023 | Tempo de leitura: 3 min

Virou o ano: balanços, perspectivas, sonhos, simpatias, cor de roupa...

Virou o ano, mas a história pessoal não vira. Aquilo que temos impregnados em nós permanece, seja como saudade, lágrimas, sorrisos, alicerce... Alguns fatos podem e devem ser superados, contudo isso não significa que, mesmo com menor intensidade, deixem de seguir conosco.

Nesses primeiros dias do ano, lembrava-me do tempo de criança, quando íamos para Poços de Caldas (onde chegamos a residir) ou Casa Branca (terra de nossa avó paterna). Na entrada das fazendas, havia latões de leite. Meu irmão e eu competíamos sobre quem avistava primeiro e contávamos para anunciar o vencedor. Um jogo de viagem que nos entusiasmava.

Tenho inúmeras recordações de pequeninos acontecimentos como visitar, aos domingos à tarde, o Frango Assado para folguedos nas proximidades do lago. Pequenos passeios, em lugares próximos, na perua Skoda que nosso pai possuía comprada em 1952. Se fosse o dia inteiro de lazer, por certo teria cuscuz de sardinha feito pela mamãe e Ki-Suco de uva. Nossos pais eram de grande alegria por diminutos episódios. Juntos, não ultrapassamos os limites da Serra da Mantiqueira e da Serra do Mar, no entanto, pelo coração, voamos além das ilhas Tanega-Shima. Pode virar o ano, contudo não desejo que vire a minha história pessoal, com seus encontros e desencontros, suas dificuldades e facilidades, seu alicerce além das questões terrenas.

Parei este texto para conversar com minha querida Da. Antonia Melo, da sabedoria indígena que herdou de seus avós. Possui na casa, onde reside agora, um pé de pitanga. Procura não passar muito por perto, para não saborear seus brotos. É uma pessoa admirável. Contou-me sobre a flor azul da planta aquática baronesa nos açudes de sua terra nordestina. Proliferam ao sinal da poluição proveniente do despejo de esgoto nos rios. Emendou com os passarinhos lavadeira-mascarada, cujo comportamento indica confiança no ser humano. Pássaro resistente que procura seus pares nas margens de rios e córregos. Segundo a Da. Antonia, não se pode atacá-los porque foram eles que lavaram as roupas de Nossa Senhora no nascimento de Jesus.

Seus gritos a impressionavam quando menina. Era o anúncio de que alguém morrera e as pessoas eram chamadas para as incelenças ou incelências – pequenos cânticos em virtude de falecimentos como: "Uma incelência - minha Virgem da Vitória, Despeça desta alma que ela/ hoje vai s'embora; Ela hoje vai s'embora - Vai com dor no coração: /Despeça de seu povo e diga adeus a seus irmãos; /Despeça de seu povo e diga adeus a seus irmãos".

Virou o ano, mas não virou a sua história. Pequeninos sucedidos de seu cotidiano no passado.

Existe a música do Padre Zezinho que diz assim: "Disseram que você já era/Uma quimera que já passou/Disseram que na Galileia/Nem sequer a ideia de você ficou. / Os homens ainda fazem guerra/ E fazem pouco caso do que você diz/ Amor como você viveu/ O mundo esqueceu/ Porém não é feliz. / E nem no fundo do mar/ E nem no espaço a girar, / Ninguém consegue escapar, / Da fome de ser feliz/ Doutrinas podem criar, / Costumes podem forjar, / Mas todos hão de chegar / Àquilo que você quis".

É isso: ano novo com história contínua, sob as bênçãos do Eterno.

Maria Cristina Castilho de Andrade é professora e cronista (criscast@terra.com.br)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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