A abertura de "Crimes do Futuro", último longa-metragem de David Cronenberg, tem a imagem mais bela que vi este ano, entre tantas de vários filmes que assisti de janeiro a dezembro. À primeira vista, parece uma imagem deslocada: uma criança sob o sol, na beira da praia, perto de sua casa, com um navio encalhado ao fundo. O que vem depois - a história de artistas que cortam a própria carne - não parece combinar com essa imagem de alívio.
Percebemos, poucos a pouco, que não se trata apenas de uma bela imagem. Mais que isso, trata-se de um resumo da obra: em um mundo em que os adultos experimentam as mais diferentes sensações, em que parecem buscar novos estímulos para seus corpos, em que o desejo e a arte imbricam-se o tempo todo, a criança só quer ser criança.
"Crimes do Futuro" é também um filme sobre o câncer. Sobre como a arte casou-se à ciência e os homens começaram a produzir tumores em seus próprios corpos para depois extirpá-los a uma plateia que paga para assistir. Nada mais atual e assustador: atrás dos estímulos mais profundos, fazemos dos nossos corpos o palco de um espetáculo de horror.
A criança é também fruto de uma experiência. Seu corpo pode digerir plástico. Ainda no início, ela é morta pela própria mãe. Está de passagem. Mais tarde, seu cadáver será oferecido ao ritual com plateia - ao espetáculo - do protagonista, o mesmo homem que extrai, com a ajuda da companheira, os tumores que planta em seu corpo. Ele é interpretado por Viggo Mortensen, ela por Léa Seydoux. No show e na vida, eles completam-se.
O filme de Cronenberg é cruel mas necessário: diz-nos muito sobre os entraves da nossa civilização, sobre os nossos fetiches estranhos, sobre como nossa evolução não foi capaz de frear nossa natureza predatória. Por isso o navio encalhado, o sinal maior de nosso progresso convertido em entulho, estrutura morta aos nossos olhos. Como um câncer parcialmente imerso no corpo, no oceano, e parcialmente exposto, a nos assombrar.
Em "Terra Estrangeira", Walter Salles também utiliza uma paisagem com navio encalhado e faz dessa imagem a mais forte de seu filme. É, sem medo de cair no exagero, a imagem que simboliza o cinema brasileiro da década de 1990. À frente da nau encalhada está o casal de amantes, os desterrados brasileiros em fuga, na Europa, nos tempos do governo Collor.
O ano que está terminando deixa outras belas imagens. Mais que quadros, há cenas e sequências que merecem ser lembradas, como o momento em que a heroína de "A Mulher do Espião" grita "bravo!" perante os militares japoneses, seus perseguidores, quando apresentam o filme secreto de seu marido; ou o abraço entre pai e filha, entre dois tempos, ao som de "Under Pressure" em "Aftersun", essa bela revelação de Charlotte Wells.
Enquanto a indústria de filmes continua jogando pesado para roubar nossa atenção, com batalhas de aviões a jato, alienígenas azuis e brincadeiras típicas de games descerebrados, é bom constatar que ainda se faz muito com pouco. E que criadores c<ctk:-10>omo Cronenberg, com apenas uma imagem, fazem melhor que uma indústria inteira.
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (rafaelamaralreis@gmail.com])