Outros dezembros

14/12/2022 | Tempo de leitura: 3 min

O mundo hoje é muito diferente do que era antigamente. Isso é óbvio. Nada permanece. Tudo é dinâmico. Heráclito já dizia, com sua sabedoria enigmática: "Ninguém se banha duas vezes nas águas do mesmo rio". Claro. As águas são outras, mas a gente também não é aquela pessoa.

Quando era criança, parece que o Natal demorava a chegar. O ano era longo e lento. Que coisa boa! Hoje, mal começa e já termina.

Dezembro, na Jundiaí dos anos cinquenta/sessenta do século passado, era uma cidade tranquila. As pessoas se conheciam. Andava-se a pé, cumprimentava-se todo o mundo. Parava-se para conversar. "Alguns dedinhos de prosa!". Caminhava-se pelas ruas, a qualquer hora, sem receio de assalto.

No final de novembro, surgia aquela moça da paróquia - na nossa rua ela se chamava Iracema - indagando se a família gostaria de receber a visita do Menino Jesus. Era óbvio que sim. Escolhia-se a data. A dona da casa caprichava no altar doméstico: a melhor toalha, castiçais, flores.

A imagem do bambino vinha em procissão, trazido da casa anterior. Era costume que a criança primogênita o carregasse, com todo o cuidado e carinho. As demais vinham em seguida, cantando "O meu coração, é só de Jesus/ A minha alegria, é a Santa Cruz". Naquela noite, a imagem ficava naquele espaço reservado e abençoado. Até à noite seguinte.

Às dezenove horas chegavam as crianças e a responsável pela reza. O terço era a oração escolhida. Depois disso, as despedidas. A família entregava um pequeno invólucro de papel crepom, contendo balas, pirulitos e outras guloseimas. E o Menino Jesus ia para outra casa.

Quando terminava dezembro, todas as imagens iam em procissão para a Matriz - ainda não havia diocese em Jundiaí - e ali eram recolhidas, para retornarem no outro dezembro. Isso acontecia em toda a cidade. Algo que terminou, assim como a genuína celebração natalina. Hoje se fala em presentes, em Papai Noel, em ceias, em bebedeiras. Esquece-se do aniversariante.

Nunca acreditei em Papai Noel. Acho que meus irmãos também não. Sabiam que algum presente era comprado - com sacrifício - pelo meu pai. Durante um período, ele trazia da fábrica de fósforos, as Indústrias Andrade Latorre, onde também trabalhou, um catálogo de brinquedos da Estrela. E escolhíamos ali, sabendo que era uma aquisição feita com o salário dele.

O que não faltava era o presépio. Com todo o preparo anterior. Folhagens nos pequenos vasos, serragem que se apanhava na oficina "1º de Maio - Nalini & Carbol" ou no Filippini, quando já não existia mais a marcenaria. A operação de tingimento da serragem, para torná-la verde, era acompanhada com preocupação por minha mãe. Sempre havia o risco de se espalhar tinta verde por toda a casa.

Quando completei dez anos, minha mãe comprou um presépio enorme, parece que fabricado em Guaratinguetá. Foi o melhor presente que já ganhei. Era hábito visitar outros presépios. Em residências e nas igrejas.

Na véspera do Natal, aguardava-se a Missa do Galo que era à meia-noite. Quanta vez o sono chegava e não resistíamos: eu costumava acordar quando encostava o rosto no granito gelado da colunata da Matriz.

No dia seguinte, almoço em casa dos avós maternos. Fui mimado por ser o primeiro neto de Doninhana e João Barbosa. Não faltou carinho. Nem exata noção do significado do Natal. Mas eram outros tempos. Infelizmente, não voltam. Residem no jardim da memória, do qual ainda tenho as chaves.

José Renato Nalini é reitor e presidente da Academia Paulista de Letras (jose-nalini@uol.com.br)

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