Apropriação

09/12/2022 | Tempo de leitura: 3 min

Segundo os dicionaristas, "apropriação" significa tomar algo que não pertence a ninguém.

Em princípio até se pode reconhecer a atividade como sendo isso, todavia, não é bem assim, notadamente quando alguém se diz autor de determinado fato que, no mais das vezes, tenha alcançado vulto, lembrando da clássica frase de que "só filho bonito tem pai" ou ainda que " só coisas certas tem autoria". Traduzindo: filho feio não tem pai e coisas erradas não são assumidas pelo seu autor.

Há determinadas situações, coisas, fatos, produtos e etc, que não se perdem por ação popular gerando proteção legal porque corriam risco enorme de se perder, como, por exemplo, o açaí, que, se não fosse considerado "patrimônio cultural", seria dominado por estrangeiros. Como também o famoso guaraná que passou a ser considerado "patrimônio do Brasil", caso contrário teríamos perdido.

Retomando a ideia do "filho bonito", encontramos a capoeira, enquanto modalidade esportiva que mais cresceu nos últimos tempos, até por se tratar de uma – se não a maior e mais completa – englobando musicalidade, dança, agilidade, raciocínio, ginga, mobilidade, rapidez etc e etc., que despertou interesse em um segmento religioso, inclusive, modificando a essência e a tradição, eliminando, dentre elas a formação dos capoeiristas nas famosas rodas, impondo que os praticantes fiquem perfilados e proibidos de entoar cantigas relativas a ancestralidade africana.

Especificamente com relação à capoeira, o Art. 20 do Estatuto da Igualdade Racial prevê:" O poder público garantirá o registro e a proteção da capoeira, em todas as suas modalidades, como bem de natureza imaterial e de formação da identidade cultural brasileira, nos termos do art. 216 da Constituição Federal. "

Nessa esteira, houve tentativa de apropriação com relação ao famoso acarajé, obrigando sobrevinda de medida jurídica tornando o alimento patrimônio material e imaterial, evitando com isso, apropriação indevida.

Causa estranheza esse tipo de apropriação de modalidade esportiva e alimento, ambos de origem africana e vinculado à religião mais combatida por pessoas ou segmentos que tentam a apropriação.

Outro exemplo foi encontrado na medicina como, por exemplo, a participação de Hamilton Naki um negro no primeiro transplante cardíaco em humanos no ano de 1967, tendo sido reconhecido somente no ano de 2002.

Até então, todos os louros foram entregues ao médico branco Christiaan Barnard, em razão do agressivo regime da segregação racial imposto na África do Sul, onde ambos viviam e o negro não poderia aparecer, muito embora o médico branco tenha seguido os ensinamentos e técnicas desenvolvidas por Naki, realizando transplante em animais.

De mesmo modo se atribui o título de "pai da medicina" ao grego Hipócrates, sendo que o primeiro das artes médicas foi o africano Imhotep, que viveu nos anos de 2686 a 2613, no antigo Império Egípcio. Em alguns escritos encontramos que os gregos plagiaram os estudos e experiências africanas, inclusive as deixadas por Imhotep.

De todo o modo, o que se sabe é que os grandes feitos realizados pelos negros permaneceram na omissão por inegável medo da perda de privilégios ou, quiçá, a falsa ideia de que a tal supremacia branca é uma postura absolutamente dispensável e até desumana.

O mesmo se constata na engenharia pois, por exemplo, pouco se divulga dos grandes irmãos Rebouças, Theodoro Sampaio, Lima Barreto; no direito, agora bem divulgados Luiz Gama; José do Patrocínio; na literatura Cruz e Souza, Machado de Assis, Benedicto Galvão; militares Joaquim Nabuco, Henrique Dias; nas artes com "Aleijadinho", Estevão da Silva; na política Nilo Peçanha, Antonieta de Barros, Abdias do Nascimento  ... enfim não se medem esforços para esconder os grandes feitos sob a falsa ideia de que tais conhecimentos não alcançariam o seu merecido lugar na história porque desenvolvidos por negros!

Tratar a verdade deveria ser obrigatório tanto quanto tratar os seres humanos enquanto seres humanos, dando e respeitando  a cada um o que lhe pertence e sempre foi seu por direito e em nome da verdade.

Eginaldo Honorio é advogado, doutor Honoris Causa e conselheiro estadual da OAB/SP (eginaldo.honorio@gmail.com)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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