Agulhas terapêuticas

08/12/2022 | Tempo de leitura: 3 min

O livro "Nossa Luz Interior", de Michelle Obama, oferece oportunidade para muitas reflexões. A mulher que viveu na Casa Branca por oito anos, entre 2009 e 2017, considerada uma das mais influentes do mundo, volta a partilhar a intimidade de sua vida e de seus pensamentos com milhões de leitores. O livro "Minha História" vendeu quase vinte milhões de exemplares e foi traduzido para mais de cinquenta idiomas. Agora, ela conta como reagiu à brusca mudança de rotina: da normalidade para a crise global posta pela pandemia.

O livro é excelente e concilia memórias e inspiração para quem se dedicar a lê-lo. Não gosto da expressão "auto-ajuda", porque penso que todos os livros devem ajudar. Se eu não ganhar nada com a leitura, em termos de aprendizado e de crescimento pessoal, por que perder tempo?

Ela conta: "Às vezes só nos damos conta de uma ferramenta depois que ela passa a funcionar para nós. E às vezes são as menores ferramentas que nos ajudam a entender os maiores sentimentos. Aprendi isso faz uns anos, quando encomendei algumas agulhas de tricô sem refletir sobre porque precisava delas".

Essas as agulhas do título desta reflexão. Agulhas terapêuticas poderiam ser as que nos inoculam medicamentos, principalmente vacinas. Qual a terapia das agulhas de tricô?

Isso mexe com as minhas memórias. Minha mãe tricotou durante toda a sua vida. Nos últimos anos, quando já não enxergava bem, fruto de diabetes, fazia crochê. Toda a família e os amigos mais próximos têm toalhas e guardanapos que ela guarnecia de caprichosas barras de crochê.

Minha tia Lucy, a mais próxima, também tricotava. Bastava saber que alguém da família estava grávida e já cuidava de formar um enxovalzinho. Sapatinhos, casaquinhos, conjuntos feitos com o ingrediente que não pode faltar em qualquer trabalho: o amor. E outra tia, Josefina Nalini de Moraes, especializou-se tanto que era conhecida como "Professora de tricô".

Compreendo, portanto, o que as agulhas de tricô significaram para Michelle em plena pandemia. Se Proust encontrou nas madeleines a inspiração para escrever "Em busca do tempo perdido", a ex-primeira dama americana recobrou lição ancestral, ela que nunca foi "de ter hobbies. De vez em quando, me deparava com alguém - em geral, mulheres - tricotando nos aeroportos e nos auditórios universitários, ou no ônibus, a caminho do trabalho. No entanto, nunca dei muita atenção a isso, nem ao tricô, nem à costura ou ao crochê, nem a nada do gênero. Estava ocupada demais acumulando horas e monitorando meu desempenho".

Só que a chamada familiar despertou-a para a importância do tricô: "O tricô estava ali, entretanto, entranhado no meu DNA. Ao que consta, sou descendente de costureiras. Segundo minha mãe, todas as mulheres da família dela tinham aprendido a manusear agulhas e fios, a coser, a fazer crochê e a tricotar. Menos por paixão e mais por praticidade: costurar era uma salvaguarda simples contra a miséria. Sabendo fazer ou remendar roupas, a pessoa sempre tinha como ganhar dinheiro. Havia poucas coisas na vida em que se podia confiar, e as próprias mãos eram uma dessas coisas". As mãos obreiras e caprichosas ainda valem muito.

Narra ainda que sua bisavó, viúva jovem, garantiu seu sustento e o de dois filhos remendando roupas dos outros. Lição de vida que deve servir para todos. E que deveria fazer com que o Estado, principalmente o Município, propiciasse tal aprendizado e treinamento a quem poderia adicionar, com essa atividade, algo mais à escassa renda dos hipossuficientes.

José Renato Nalini é reitor e Presidente da Academia Paulista de Letras (jose-nalini@uol.com.br)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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