O que significa a lista da Sight and Sound

07/12/2022 | Tempo de leitura: 2 min

E por que "Jeanne Dielman" expressa o "espírito" do nosso tempo? Porque, primeiro, é um filme dirigido por uma mulher, a belga Chantal Akerman. Porque é um filme feminista e porque, ouso dizer, é anticinema - o que não quer dizer que seja bom ou ruim. Seu filme foi lançado nos anos 1970 e, em resumo, aborda o cotidiano de uma mulher: tudo e nada na tela, longas sequências em que sua atriz, Delphine Seyrig, prepara a comida, arruma a casa, mantém os afazeres diários, recebe o filho, mais tarde um homem.

Anticinema, penso, porque joga fora da estrutura narrativa à qual nós, ao longo dos anos, aprendemos a nos ligar. Raccord sobre o eixo, plano/contra-plano, movimentos bruscos, interpretações carregadas - nada disso faz parte de "Jeanne Dielman". Um cinema nem de prosa nem de poesia. Um cinema que nos pede paciência e, a partir da absorção do tempo, de seu alargamento às raias do insuportável, torna-se a expressão mais completa possível do que é a vida de uma mulher comum, sem retoques.

Um grande filme, sem dúvida. Se merece a primeira posição é outra história. Deixo para cada um fazer suas escolhas e suas listas. A da Sight and Sound revela-nos um tempo em que ousadias estéticas podem superar fórmulas que por décadas conquistaram cinéfilos - como "Cidadão Kane", "Um Corpo que Cai", "Rastros de Ódio", ainda que estejam na lista e bem posicionados - e perceber um movimento feminino ou fora do eixo Estados Unidos-Europa - para coroar não apenas "Jeanne Dielman", mas outras pérolas como "Bom Trabalho", "Meshes of the Afternoon", "As Pequenas Margaridas", "Touki Bouki" e "A Negra De…".

Como toda lista, sentimos falta de filmes extraordinários e estranhamos a presença de obras recentes como "Parasita" e "Retrato de uma Jovem em Chamas". Nenhum filme de Buñuel, nenhum de Resnais, nenhum de Cassavetes, nenhum de Hawks, nenhum de Glauber Rocha. Por sinal, não encontrei nenhum filme latino-americano entre os 100 escolhidos.

Alguns dos favoritos de todo mundo continuam por lá: "Cidadão Kane", que por décadas era o número um da Sight and Sound caiu para a segunda posição em 2012, atrás de "Um Corpo que Cai", e agora figura na terceira posição. "A Regra do Jogo" e "Aurora" seguem fortes entre os 20 mais. As obras-primas de Ozu, Kurosawa, Tarkovski e Fritz Lang também estão distribuídas ao longo da lista, um bom recorte para quem quer descobrir filmes.

Além da lista dos críticos, a Sight and Sound faz um compilado com votos de cineastas. Nesse ranking, ocupa o topo "2001: Uma Odisseia no Espaço", à frente de "Cidadão Kane", "O Poderoso Chefão" e, empatado em quarto lugar com "Era uma Vez em Tóquio", de novo "Jeanne Dielman". Esse ranking oferece compensações, filmes marcantes que sumiram da relação dos críticos. Entre eles, "Um Inverno de Sangue em Veneza", "Lawrence da Arábia", "A Conversação" e "Chinatown" - todos entre os meus favoritos de sempre.

Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (rafaelamaralreis@gmail.com)

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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