Míseras glórias mundanas

01/12/2022 | Tempo de leitura: 3 min

Vaidade, tudo é vaidade! Orgulho, companhia permanente dos homens fracos. Tudo se acaba com a morte. Esta costuma causar impacto durante pouquíssimo tempo. Logo prepondera o esquecimento, a penumbra e a vida segue para quem foi dado viver mais um pouco.

Quando se assiste a funerais impregnados de pompa e circunstância, como foram os da Rainha Elizabeth II, pensa-se que tais rituais são para os que podem assisti-los. Nada importa para quem morreu.

Vidas encantadas, daqueles que usufruíram dos benefícios a que poucos mortais têm acesso, nem sempre terminam também gloriosas. A morte, implacável em relação a todos, pode reservar surpresas.

Lendo a biografia do grande historiador e romancista português Alexandre Herculano (1810-1877), vejo que faleceu a 13 de setembro de 1877, em sua quinta de Vale de Lobos, nos arredores de Santarém. Lisboa emocionou-se. A mídia propôs grande manifestação de pesar e surgiu a ideia de lhe erigir um monumento. Outros sugeriram se criasse uma escola com seu nome, para que a geração nascente pudesse ler e estudar suas obras. A Academia Real das Ciências convidou publicamente os acadêmicos a participar do funeral de quem fora insigne membro da Instituição.

O sepultamento ocorreu na tarde de 15 de setembro, no cemitério da Azóia de Baixo. A repercussão nos círculos intelectuais contrastou com a singeleza do enterro.

Verdade que ele morrera longe da capital, isolado do mundo em que se criara. Dormia seu último sono numa pequena, rústica e humilde necrópole. Não recebera a consagração nacional que lhe era devida.

Um jornal da época referia: "É triste o que vamos narrar, mas entre um túmulo entreaberto ainda, seria profanação esconder a verdade, que, por muito amarga, não ode temer a face daquele que ali dorme hoje o primeiro sono da sua eternidade. Funeral tão pobre ainda não víramos, porque a tumba da Misericórdia tem assim mesmo uma significação, que pode enternecer, mas não afronta; a significação do funeral de Herculano é tanto mais para envergonhar, quanto é certo que ela desmente, com a autoridade de um fato incontestável, os sentimentos nacionais ainda ontem manifestados de modo tão solene ao propagar-se, com a velocidade das más novas, a nova tristíssima do passamento do eminente escritor. O corpo de Herculano foi colocado sobre uma tarimba forrada com uns farrapos, que pareciam uma irrisão. O pano que cobria o caixão era mais ordinário dos que os que se veem em Lisboa nos enterros por caridade. Esperamos que a iniciativa particular resgate anda Portugal da vergonha por que acaba de o fazer passar".

Esboçou-se um desagravo. A Câmara Municipal de Lisboa, em 1879, formou comissão para uma grande homenagem nacional. Propôs-se a feitura de um túmulo para acolher os restos de Herculano. Em 1884, decidiu-se que ele ficaria na casa do capítulo do Mosteiro de Belém.

Dez anos levou a execução do projeto, pois só a 27 de junho de 1888 as cinzas de Herculano foram transferidas da Igreja da Azóia para os Jerónimos, onde na manhã seguinte se realizou uma cerimônia religiosa em que se fez ouvir o verbo esplendoroso do Cônego Alves Mendes.

Em 1910, no centenário de nascimento de Alexandre Herculano, houve significativa homenagem. Em 2010, o segundo centenário já não ecoou. Para ele, isso não importa. Já não lhe afagam as míseras glórias mundanas. Mas há pessoas que acreditam ser infinitas. Pobres delas!

José Renato Nalini é reitor e Presidente da Academia Paulista de Letras (jose-nalini@uol.com.br)

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