Dinastia de almas superiores

27/11/2022 | Tempo de leitura: 3 min

O mundo precisa de paz e o Brasil ainda mais. A contaminação dos espíritos por fanatismo insano separa famílias, destrói amizades, semeia amargor. Uma permanência tão curta por este planeta deveria ser peregrinação serena. Bastam as vicissitudes naturais. A enfermidade, a decrepitude, a rapidez com que se escoam os anos. Para que criar mais motivos artificiais e fúteis para a desavença e o desamor?

É o momento de procurar inspiração em perfis nobres e deixar a indigência moral como algo de que se tem de fugir. Há inúmeras vidas exemplares nas quais se pode mirar como paradigma a seguir. Falo daquelas figuras singulares, ungidas por uma aura de verdadeira santidade, a servir de luzeiro para todos, até para os que não têm fé.

Se a crença é uma dádiva, seres humanos existem que, ainda sem ela, possuem nobre sensibilidade, altos ideais e são capazes de ações generosas. Antero de Quental escreveu sobre a santidade, ser "a mais alta forma da personalidade, termo último da evolução universal e a própria finalidade do ser". Sim. Nossa vocação é a perfectibilidade.

Todos conhecem figuras que, embora falíveis, pois humanas são, constituem padrões que se alteiam por suas virtudes e procedem de maneira compatível com a racionalidade. Sabe-se que a criatura não nasce envolvida em nimbo de glória, luminosamente purificada de toda a mácula. Enfrenta perigos e riscos na peregrinação terrena. Percorre-se, quanta vez, sombrio caminho de perdição, mas a cada tropeço, levanta-se e se reinicia a caminhada. O passo é o movimento natural do percurso que se faz pelo planeta.

Viver é uma batalha sem trégua e não causar a infelicidade alheia uma verdadeira epopeia. O heroísmo revisitado não é próprio aos aventurescos episódios que evidenciem indomável desassombro. Não. Na humildade discreta abrigam-se os verdadeiros méritos, não na exuberante torre da soberba.

A prossecução alucinada e incessante de pobres bens efêmeros, a matéria que suscita a "aura sacra fame", afasta os humanos da verdadeira riqueza, que reside na teologia do amor. O mundo inteiro tem falta de amor. E o Brasil de nossos dias parece o receituário do desamor. O achincalhe, o sarcasmo, a ironia cruel, o deboche.

Cumpre desprezar tudo o que afasta o humano dos ideais de conduta que o aproximem do Criador, para resgatar aquilo que denuncia essa origem à imagem e semelhança do formulador do divino design.

Nada sobra da História dos homens se nelas não se detectar o amor que justificou sua existência. É verdade que se pode registrar, como gesta heroica, feitos e proezas. Mas essas páginas, quando o amor se apagou, reduz-se a epitáfio tumular ou a legenda fria de museu.

Os magníficos vultos da história, ainda quando a golpes de genialidade traduziram o grito, a esperança, os sofrimentos e a glória da humanidade, se não se encheram de infinito, confinam-se a coordenadas estreitas. Heróis e sábios, filósofos e políticos, literatos e artistas, nada obstante a perenidade da obra, serão múmias ressequidas, se lhes falta o amor pelos semelhantes. Esse é motor do coração.

O amor é sempre universal, atual, ardentemente contemporâneo, presença e força que não morrem, peregrino eterno de todos os caminhos. Fonte inexaurível de ternura pelos demais. Estes integrantes da dinastia de almas superiores é que nos devem guiar, não os toscos cegos que se arvoram em falaciosos líderes.

José Renato Nalini é reitor e Presidente da Academia Paulista de Letras (jose-nalini@uol.com.br) 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.