Os afroconvenientes

02/09/2022 | Tempo de leitura: 3 min
EGINALDO HONÓRIO

Estamos comemorando dez anos do regime de cotas raciais nas universidades a partir da Lei n. 12.711/12, que dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio, estabelecendo critérios em seu artigo 3º prestigiando autodeclarados pretos, pardos e indígenas e pessoas com deficiência, na proporção do último Censo IBGE.

Em pleno vigor da referida lei, aquele ministro da educação chegou ao disparate de afirmar que "as universidades deveriam ser para poucos", na mais absoluta prova do desconhecimento da realidade e intimamente direcionada aos "oportunistas de plantão" e mais ricos, impedindo a descoberta de talentos e melhoria na educação em sentido amplo.

A fala desse sujeito, também reflete a realidade brasileira onde somente "os poucos" tem acesso, muito embora a USP tenha constatado que os "cotistas" tiveram resultados melhores ou iguais aos que ingressaram pelo sistema universal !

Não bastasse isso, o desrespeito a mandamento constitucional e de direitos humanos determinando a redução das desigualdades e eliminação da discriminação se confirmou com essa fala e o que se verifica no dia a dia.

Independentemente disso, é espantoso o número de pessoas, muitas delas - contra o regime e/ou nada fazem ou fizeram a favor - diante da possibilidade de obtenção de alguma vantagem se autodeclaram pertencentes ao segmento!

Há casos que alguns oportunistas chegaram até a pintar a pele para se enquadrar no quesito cor tentando ser classificado enquanto negro e, outros - sempre tidos e autodeclarados brancos - diante de uma possível vantagem assim se autodeclaram que, além do abuso, tipifica crime de falsidade ideológica sujeito a perda da vaga, seja na universidade, seja no serviço público, seja no processo eleitoral.

Nessa trilha tive a oportunidade de ouvir de um servidor público, que um colega, aprovado pelo regime de cotas raciais por ter em sua árvore genealógica um trisavô ou tetravô negro, estranhamente, afirmou ser contra o regime!

Aqui, nesta cidade, por exemplo, criamos a 1ª Lei de cotas raciais para ingresso no serviço público no âmbito do Município, que ajudei a construir enquanto militante e primeiro presidente do Conselho da Comunidade Negra. Notamos que muitas pessoas brancas abusaram, vez que a Nossa Lei garantia percentual aos que se declarassem "afrodescendentes". Neste sentido, nada poderia ser feito, até que, em 2019, articulando com Executivo e Legislativo Municipal modificamos a lei, da qual passou a constar "pretos e pardos" e, aos que assim se declararem sejam avaliados por uma comissão de heteroidentificação.

Em recente levantamento apurou-se que dos 68 deputados estaduais e distritais que concorrem a reeleição e declarados brancos, ao efetuarem cadastro 2022 se declararam pardos! Questionados a respeito, a resposta obvia: "Foi equívoco da assessoria no cadastramento". Clássico né?

Eis a inegável prova de que não são "afrodescendentes", mas "afroconvenientes". Se for "conveniente" sou.

O regime de cotas visa diminuir as desigualdades e não tomar nada de ninguém pois há espaço para todas as pessoas e, além de não justificar, não existe a superioridade de um sobre o outro, notadamente em razão da cor da pele.

Os obstáculos que se antepõem aos integrantes da comunidade negra, são apenas por eventual medo da perda de privilégios que, em se conquistando a igualdade, não haverá (privilégio) e, sem qualquer medo de errar todas as pessoas ganharão.Vale muito a pena tentar. Que tal?

Fechando: não poderia deixar de lembrar que cotas sempre foram em favor dos brancos e europeus desde o período da escravidão no Brasil, garantindo vaga às escolas, na exploração das fazendas pré-lavradas, no mercado de trabalho, na imigração, no tratamento da saúde, na justiça, no processo eleitoral. Basta pesquisar.

Dia 31 de agosto é considerado, por recomendação da Organização das Nações Unidas (ONU), Dia Internacional das Pessoas Afrodescendentes, que também reforça a ideia e interesse internacional de combater as desigualdades e permitir reflexão sobre o assunto.

EGINALDO HONÓRIO é advogado e conselheiro estadual da OAB-SP

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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