NOSSAS LETRAS

Grão Mogol

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi
| Tempo de leitura: 6 min
Reprodução

Todas as coisas têm nomes e investigar o porquê de cada um deles é uma das tarefas desafiadoras da Linguística, ciência que estuda a linguagem verbal humana com base em observações e teorias que possibilitam a compreensão do evoluir das línguas e idiomas. No caso de lugares, cabe a uma área da linguística, a toponímia, fazê-lo. É ela que nos revela que em nosso país a maioria dos nomes de cidades foi dado por colonizadores. Sendo majoritariamente cristãos católicos, eles batizavam os povoados  com nomes de santos tornados padroeiros do lugar.

Porém, no caso de acidentes geográficos, há uma quantidade expressiva de termos indígenas e outra menor de africanos. A contribuição europeia, via imigrantes, também existiu, mas foi pequena porque quando chegaram no final do século XIX quase tudo estava nomeado. Não se pode deixar de lado neste balanço sucinto o fato de que, ao longo do tempo, políticos foram useiros e vezeiros em batizar ou rebatizar cidades com nomes de seus familiares.

A toponímia se apoia na filologia, na história, na geografia e na arqueologia, ciências que interligadas possibilitam relação dialógica e podem oferecer respostas que elucidam. Entretanto, há casos intrigantes onde pairam dúvidas sobre a gênese dos topônimos. É o caso de Grão Mogol.

Nas últimas linhas do conto ‘O enfermeiro’, publicado em 1896, Machado de Assis escreve: ‘Adeus, meu caro leitor, leia isto e queira-me bem; perdoe-me o que lhe parecer mau (...). Pediu-me um documento humano, ei-lo aqui. Não me peça também o Império do Grão Mogol (...)
O Grão Mogol, tomado no relato como metáfora de algo grandioso, refere-se ao império fundado em 1526, entrado em declínio a partir do século XVIII e extinto definitivamente pelo poderio britânico em 1857. No seu auge foi possivelmente o Estado mais rico, sofisticado e poderoso do planeta. Contava com população de mais de 100 milhões de habitantes, distribuída em um território que compreendia a maior parte do que é hoje Índia, Paquistão, Afeganistão e Bangladesh. Foi em algum desses pontos que se descobriu o maior diamante do mundo antes do Cullinan ser encontrado na África do Sul em 1905.

Quando Machado de Assis escreveu seu conto sobre certo enfermeiro ambicioso que de repente se viu ensimesmado em questões éticas, já existia outro Grão Mogol no Brasil. Muito diferente do oriental, era pequena vila recém elevada a cidade, constituída por um núcleo de mineradores em busca de diamantes, localizada a 60 km de Montes Claros, cidade antiga do norte de Minas.

O nome talvez traísse a esperança dos primeiros moradores em encontrar nas minas locais algum diamante similar ao homônimo indiano. É uma hipótese para escolha tão peculiar, embora Minas tenha gestado muitos outros singulares: Maria da Fé, Serro Frio, Brejo das Almas, Dores do Indaiá, Três Corações do Rio Verde, São João del Rei, Mar de Espanha, Tremendal, Coromandel, Juiz de Fora, Borda da Mata, Abre Campo, Passa Tempo, Buriti da Estrada, Tiros, Pequi, Pomba, Formiga, São Manuel do Mutum, Caracol, Varginha, Sete Lagoas, Soledade, Pouso Alegre, Dores da Boa Esperança...

Há uma segunda explicação para ‘Grão Mogol’ que, embora não se sustente em nenhuma tese etimológica, é a mais conhecida e defendida pelos atuais 13 mil habitantes. Dizem que deriva da expressão ‘grande amargor’, que descreve os sentimentos dos locais diante das brigas e mortes que marcaram as disputas entre garimpeiros e colonizadores no início do povoamento. Como é típico do idioma mineirês encurtar e reduzir palavras, “grande amargor” teria virado “granmargor”, depois “grãomargó”, até ficar Grão Mogol.  Se não há fundamentos científicos para a explicação do fenômeno linguístico, existem razões históricas para o sentimento de amargura. Com a descoberta de diamantes, a repressão das autoridades coloniais pesou sobre os garimpeiros que lideraram forte resistência às tropas do governo, a tal ponto que obrigaram até o então governador da província a marchar com soldados contra o núcleo de mineração.

De toda forma, a origem do nome da cidade brasileira está ligada aos diamantes, seja pelo seu lado ilusório e romântico, seja pelos fatos  trágicos e reais que legaram aos rios que a cortam nomes como Ribeirão do Inferno e Córrego das Mortes.

Hoje Grão Mogol parece cristalizada no tempo, conforme se pode ver em vídeos e fotos. Continua misteriosa e inamovível, plantada sobre extraordinário platô de quase 900 metros de altura. Dentre os habitantes alfabetizados que vivem de pensões e aposentadorias e da agricultura de subsistência, bem poucos conhecem a importância do lugar no extraordinário romance ‘Grande Sertão- Veredas’, de João Guimarães Rosa.

É em Grão Mogol que mora Selorico Mendes, que exerce o papel de pai/padrinho de Riobaldo, o protagonista da história que ali passa a infância e a adolescência. Nesse espaço rural e urbano, físico e emocional, concreto e abstrato ele vive momentos decisivos de sua vida. Como aquele onde, subitamente despertado no meio da noite, assiste em sobressalto à chegada de um bando de jagunços chefiados por Joca Ramiro (pai de Diadorim). Este procura ajuda para dois aliados, Aluiz e Alarico, os irmãos Totõe. A violência extrema, o confronto bélico, os desafios gigantescos representam o prólogo do que virá. Grão Mogol alça importância além da simples referência geográfica para se tornar elemento icônico na construção do universo da ficção e do sertão mineiro.

Venho alimentando o sonho de visitar esse lugar de nome instigante, cuja presença no romance não é casual: ele se torna imagem do mundo que caminha do rural ao urbano enquanto agrega sentidos como espaço cultural, histórico, geográfico e cênico onde reflexões filosóficas atingem patamares de grande verdade e beleza. Ainda almejo a experiência de conhecer a paisagem poderosa: as montanhas espetaculares da Serra do Espinhaço, o casario miúdo erguido por colonizados e escravos, o calçamento irregular das ruas, as calçadas onde às vezes brota o desenho de um maçônico sol amarelo, os irregulares muros de proteção, a igreja de Santo Antônio, o leito do rio Itacambiraçu- tudo em pedra.

Ali estando, é provável que vá resgatar as palavras do escritor em artigo tornado célebre por ser uma confissão de amor a seu estado natal: ‘Minas, a montanha, montanhas, o espaço erguido, a constante emergência, a verticalidade esconsa, o esforço estático; a suspensa região- que se escala. Atrás de muralhas, caminhos retorcidos, ela começa, como um desafio de serenidade’.

Quanto ao topônimo Grão Mogol, que permitiu me estender por essas linhas, se não deu sorte ao lugar estrangeiro que decaiu, e ao brasileiro não conferiu a relevância de encontro de grandes diamantes, na literatura permanece brilhante nas dimensões atemporais ao integrar o leitor a um espaço que é sobretudo o da interioridade, onde se travam batalhas constantes como as narradas em ‘Grande Sertão- Veredas’, porque como escreveu o narrador da história, ‘viver é etecétera.’

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.

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