NOSSAS LETRAS

Conta aí, professor!

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 7 min

No começo de 2024 pipocou na Internet um convite da editora Vira-Tempo para todos os professores do Brasil. Em frases provocativas, incitava-os a se lembrarem de experiências marcantes de sua vida profissional e a transformarem o vivido em texto. O objetivo era agrupar em livro narrativas temáticas tendo como contexto a escola. Não sei quantos escreveram suas histórias e as enviaram para a organizadora de ‘Conta aí, professor!’, Amanda Almeida, que tem vasto currículo na área da Educação e abre o volume com o único poema da obra: ‘Passarinheiros.’ Todo o resto é prosa.

De certo é que 175 educadores de todas as regiões do País se fizeram presentes na antologia. Mais mulheres que homens, todos contaram fatos em que foram protagonistas, apenas personagens ou meros espectadores. Entre eles se encontra Luzia Izete da Silva, graduada em Direito pela Unesp, atualmente residente com o marido e o filho adulto em Prudentópolis, cidade do Paraná de 52 mil habitantes dos quais 39 mil descendentes de ucranianos. 

Luzia é uma brasileira para quem tiro o chapéu porque a conheci de perto. Trabalhamos juntas na antiga sede do jornal Comércio da Franca, na rua Ouvidor Freire, numa salinha 3x3, gelada no inverno e tórrida no verão. Eram os últimos anos do século passado e conversávamos bastante entre rotinas que de minha parte abrangiam produzir a Objetiva; dar formato de notícia aos boletins de ocorrência da polícia; escrever textos autorais do Caderno de Domingo e da página de Culinária; revisar textos de articulistas e os classificados que nos sábados erguiam-se à nossa frente como uma montanha que precisávamos desbastar até o início da noite. Era no último dia da semana que mais conversávamos e eu podia perceber que aquela moça era incomum por sua inteligência, lucidez, ética, gosto pelo conhecimento, capacidade de lutar, condição de entender as contradições do mundo e as injustiças da vida e mesmo assim buscar um lugar para si, onde pudesse se expressar em sua integridade. 

Foi sobre esse período de sua vida de jovem em Franca e a respeito de outro anterior, em Americana, ainda adolescente, que Luzia escreveu a crônica memorialística que hoje se encontra no livro citado, lançado na última Flip em evento ao qual ela e a maioria dos autores estiveram presentes. Sua narrativa tem por título ‘A Brasília verde e os gregos’. O carro é reminiscência da discreta e elegante professora Dayse, a quem a autora é grata pelo exemplo inspirador. A referência aos gregos é resgate de uma conversa que tivemos na sala do Comércio onde lhe contei um dia que os filósofos da Grécia Antiga já haviam dito tudo que era importante saber. Na sua escrita, a junção das lembranças coordenadas por um estilo sóbrio mas certeiro levou a aforismos como ‘a memória é o atavismo mais humano que herdamos’ e a axiomas sobre a arte de educar: ‘A cadeira de professor é o ponto de observação solitário, onde o universo escolar gira à nossa volta em ondas onde razão e emoção têm peso flutuante.’

Sob o império da razão alguns autores da antologia construíram suas histórias com pitadas de Paulo Freire e Antônio Cândido, como Patrícia Santos de Abreu em ‘O poder transformador da educação popular’; Paula da Silva Alves em ‘Por que não?’; Frederico Jonas Silva Lima em ‘O Karma Do Professor Que Virou Dharma à Aluna’; Evelyn Mariano Dias, em ‘A educação que me salva’. Mas, sem dúvida, foi quando os professores deixaram falar a emoção que histórias memoráveis se ergueram.

Karlla Tathiana da Silva Oliveira comove em ‘Minha flor de lotus’ ao comentar a vitória de uma criança difícil: ‘o meu aluno floresceu, apesar de tudo. Ele devolveu a esperança ao meu coração, apesar de tudo.’ Maria Aparecida Dias Silva faz movimento parecido em ‘O menino impossível’. Geisla Camila de Abreu Lima, em ‘O poder da palavra escrita’, é pungente ao relatar sua infância de menina pobre que descobriu na escrita uma ‘possibilidade de reexistir em lugares que nem sempre se mostram favoráveis, como professora no chão da escola, mulher no mundo, mãe no mercado de trabalho.’ Gilcilene Lourenço Elias toca a alma do leitor mais insensível ao contar o encontro com um apavorado menininho frágil e trêmulo, ’olhinhos brilhando e derramando-se em lágrimas’, levado à sala da diretoria por uma professora ‘irritada, avermelhada, esbravejante’ na crônica ‘O purgatório pode ser céu aos olhos de quem o vê’.

Há textos profundos, como ‘(Não) dizem as paredes’, de Marília Alves de Carvalho, que reflete sobre o silêncio a partir da frase ‘Ninguém se importa’, escrita com corretivo branco no muro verde e descascado de uma escola. E há os políticos, como ‘Brumas da Memória’, onde Weber José Vargas Muller recorda sua época de estudante do período da ditadura militar: ‘Os tempos sombrios permeavam a formação plena dos estudantes sem chance para o voo. O controle morava ao lado. E os próprios sujeitos iam traçando o caminhar da referência dos corpos disciplinados. Os anos 70 demarcaram a consolidação de uma geração educada no vazio político, com um silêncio ensurdecedor e gritos contestáveis nos porões da ditadura.’

Há textos hilários como ‘’Anexo’, de Lygia Maria Andrade Figueira dos Santos, e ‘Sala dos professores’, de Jaqueline Brito Fernandes, que descreve o lugar do tudo-quanto-há, onde ‘o gênero alimentício é o que mais tem saída: ‘a variedade dos produtos é imensa. Tem a pipoca gourmet, o bolo de pote, as bandejas de minipizzas, os biscoitos de nata, as empadinhas e até bolinhos de bacalhau confeccionados pela sogra portuguesa de um professor, receita legítima das terras lusitanas. Aliás, cabe aqui um comentário: ô gente para gostar de comer besteiras!’

Há textos perturbadores como ‘À flor da pele’, de Joyce Caroline Soares dos Santos Zorzetti, sobre a aluna que joga ao chão e esmaga com o pé a rosa vermelha colocada no cabelo só porque sua professora a elogiou. Ou ‘Mal Feitas’, de Erweuter Volkart de Oliveira, que recorta um flagrante bizarro de bullying a partir de um comentário aparentemente inocente sobre sobrancelhas.

Há textos que vão além da história que contam e alçam o nível do desvelamento, como mostra Dábyla Tavares Silva Reis Lúcio em ‘Paraquedas’: ‘A educação inclusiva não é apenas para crianças com necessidades especiais. Ela é para todos. Ela abraça cada semelhança e cada diferença, fazendo o mundo ter mais sentido e graça. É sobre conhecer o outro e aprender com ele’. 

Há textos assombrosos por sua própria natureza de coisas que não se explicam à luz da objetividade, como ‘As carteiras da escola’, de Marcelo Gomes dos Santos. E textos com linguagem experimental de que é exemplar ‘Sonula da Sedicia’, com um pé no internetês.

Lido o livro, que recebi há poucos dias, conversei pelo whatsapp com Luzia Izete da Silva a quem quis agradecer as lembranças e a dedicatória. Senti nas palavras dela uma queixa velada sobre o fato de que a revisão dos textos foi relapsa ou sequer existiu, fato que muito a aborreceu. (Acho que esqueci de dizer que Luzia é perfeccionista). Considerei que não há apenas professores de português na antologia. Entre os que relataram suas experiências encontram-se os de todas as disciplinas incluídas no currículo oficial brasileiro. Então, é de se esperar que existam falhas na ortografia de um professor de matemática ou na sintaxe de um professor de ciências, o que em nenhum momento inviabiliza o que elegi como a maior virtude da obra: o grau de sinceridade dos relatos. Foi esse caráter genuíno o que mais me cativou e me fez pensar na dura luta do educador em sala de aula, tentando, na contemporaneidade onde reina o digital, conquistar a atenção dos alunos, muito mais seduzidos pelas telas que pelas palavras. É um desafio enorme que se tem todos os dias, durante toda a semana, por todos os meses, o ano inteiro. Não é de espantar que o magistério esteja entre as profissões mais estressantes, sob qualquer ângulo que se o observe.

Por tudo isso acredito que ‘Conta aí, professor!’ não deveria se circunscrever apenas como obra que serviu de plataforma para que professores falassem de suas rotinas atribuladas. Esse livro vale mais que muitas teses sobre educação que jazem nos arquivos das universidades. Ele tem muita Vida e precisaria chegar às mãos de quem detém poder e queira de alguma forma, e de fato, influenciar no sentido de melhorar o ensino público em nosso país. Olhar para a intrínseca humanidade de professores e alunos, tal como expõe o livro, pode ser um bom começo.

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.

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