
Afrânio Coutinho, em artigo sobre Mário de Andrade, depois de analisar seu papel na Semana de Arte Moderna em 1922, e no Primeiro Congresso Brasileiro de Escritores em 1948, diz a respeito do artista que “entre um e outro acontecimento, ele nada mudou: foi o inconformista, a mesma autenticidade. Viveu sempre numa ‘inquietação gostosa de procurar’. Como ele mesmo deixou escrito, ‘Deus queira que eu não ache nunca... porque seria então o descanso em vida, parar mais detestável que a morte.’
Essas ânsia e curiosidade foram responsáveis pelo polimorfismo literário do autor que se aventurou em todos os gêneros e fundiu em suas obras lirismo e epopeia, ensaio e ficção, arte e filosofia. Corajoso e transgressor, rompeu com o cânone e, pelo menos no que diz respeito a ‘Macunaíma’, livro essencial na busca por nos entendermos como brasileiros, não teve seguidores.
Escrito em 1926 em poucos dias, numa fazenda da família Andrade em Araraquara, e publicado dois anos depois, Macunaíma foi recebido com estranhamento no primeiro momento, depois reconhecido como novidade, enfim saudado pela crítica e leitores.
A narrativa que se encaixava no gênero romance era ao mesmo tempo uma epopeia, e também mitologia, folclore, história. Houve críticos que viram nela uma rapsódia, já que o autor juntava e misturava no enredo todas as tradições orais de um povo.
Quanto à forma, o léxico revelava termos procedentes dos índios de etnia tupi que viviam na Amazônia e outros vocábulos de diversas regiões do Brasil mescladas à fala popular. Essa riqueza linguística exigiu desde a primeira edição centenas de notas ao pé das páginas para que a história fosse bem compreendida.
Sobre o herói, aliás, o anti-herói, já de cara definido como ‘sem nenhum caráter’ era mostrado como tinhoso e ladino. Trocando em miúdos, um ser despido de qualquer moralidade, que através de suas peripécias exibia mais defeitos que virtudes.
Quase centenário, ‘Macunaíma’, que virou filme dirigido por Joaquim Pedro de Andrade (com Grande Otelo no papel título), não é de leitura fácil para quem busca apenas entretenimento, já que não permite ao leitor afastar-se do enredo, sob risco de se perder na história. E neste momento em que humanos parecem tão dispersos e onde manter o foco em leitura é demanda questionável da parte de quem está cercado de imagens digitais atraentes, o convite para ler ‘Macunaíma’ não raro evoca uma frase reiterada do protagonista- ‘Ai, que preguiça!’-
Essa expressão na verdade não traduz seu comportamento, pois ele parece um dínamo ao conferir muita velocidade à narração. Nunca para de agir e surpreender, desde que nasce na selva amazônica: transforma-se em adulto num passe de mágica, transa com jovens índias, encrenca-se com humanos e bichos. Briga com o gigante Piaimã, Venceslau Pietro Pietra, que lhe rouba o muiraquitã, amuleto presenteado pela índia Ci, morta em trabalho de parto. Atrás do gigante o protagonista correrá acompanhado de seus dois irmãos. Os três cruzam a Amazônia, chegam a São Paulo, dão um pulo ao Rio de Janeiro para depois voltar ao ponto de partida. Ai, que cansaço:
“Durante uma semana os três vararam o Brasil todo pelas restingas de areia marinha, pelas restingas de mato ralo, barrancas de paranãs, abertões, corredeira carrasco carrascões e chavacais, coroas de vazante boqueirões mangas e fundões que eram ninhos de geada, espraiados pancada pedris funis bocaina baroqueiras rasouras, todos esses lugares(...)’
Como se pode observar, às vezes nem o expediente das vírgulas é usado para dar um respiro nas enumerações incontáveis que marcam o estilo:
‘Nos ramos das ingazeiras das aningas das mamoranas das embaúbas dos catauaris de beira-rio o macaco prego o macaco-de-cheiro o guariba o bugio o cuará o barrigudo o coxiú o cairara todos os quarenta macacos do Brasil, todos, espiavam babando de inveja. E os sabiás, o sabiacica o sabiapoca o sibiúna o sabiá-piranga o sabiagongá que quando come não me dá, o sabiá-barranco o sabiá-tropeiro o sabiá laranjeira o sabiá-gute todos esses ficaram pasmos e esqueceram de acabar o trinado, vozeando, vozeando com eloquência.’
Defensor de uma gramática brasileira que desvincularia o português do Brasil do de Portugal, tendência que já vinha em andamento desde o fim do Romantismo, o escritor valoriza o modo de falar do brasileiro no seu cotidiano. No célebre episódio da ‘Carta pras Icamiabas’, o único capítulo do livro narrado em primeira pessoa, ou seja, pelo próprio protagonista, o que se lê é uma paródia ao português clássico de Portugal, muito diferente do modo de falar e de escrever no Brasil do começo do século XX. Subjaz ainda uma crítica à escrita de autores que se mantinham irredutíveis às mudanças propostas pelo Modernismo.
Um elemento a ser destacado por ser a alma do enredo é a metamorfose, marca do sobrenatural, do maravilhoso e do fantástico. Fenômeno constante que faz a história andar, ela se manifesta de dois modos distintos: o antropomorfismo e o zoomorfismo. Homens e bichos trocam muitas vezes de modo e status- na selva, no céu, nas cidades, sob chuva de sarcasmos, ironias e violências do narrador. Contrabalançando esses aspectos contundentes e ácidos, e conferindo alguma leveza, o prosador, também grande poeta, brilha ao traduzir as lendas indígenas recolhidas e publicadas pelo etnólogo alemão Koch-Grünberg. Por sua própria natureza repletas de metáforas ligadas a fatos da natureza, as lendas se unem a provérbios, repentes, canções populares e registros folclóricos articulando-se de maneira lírica para construir uma espécie de alegoria nacional em torno da história do protagonista e do povo que ele representa.
Com diferença de décadas reli ‘Macunaíma’ para participar de encontro em grupo de leitura do qual passei ultimamente a fazer parte com muita alegria. Foi um ganho para mim, nessa altura do campeonato. Têm razão os que dizem que lemos de forma diferente conforme a idade e as experiências. Senti o livro mais atual que nunca nas suas críticas pautadas pelo humor e pela fábula. Continua sendo difícil analisá-lo em mil palavras. Mas se tivesse de me ater a único vocábulo para traduzir sua riqueza temática e linguística usaria ‘diversidade’. Porque é mostrando essa nossa característica que Mário de Andrade chama a atenção do leitor brasileiro para a parte que lhe cabe como herdeiro de uma tradição que enquanto força transmitida por gerações se atualiza em nosso modo de ser e viver.
Cabe aqui lembrar que no mesmo ano em que Mário de Andrade publicou ‘Macunaíma’’, outro grande nome das nossas letras, Oswald de Andrade, apresentou seu Manifesto Antropofágico, que exaltava a identidade brasileira por meio da manifestação cultural do país sem a dependência da cultura estrangeira. O documento tornou-se um marco do Modernismo brasileiro e sua frase ‘Tupi or not tupi, that is the question’, uma ‘boutade’ a partir da fala de Hamlet na peça homônima de Shakespeare, ‘To be or not to be, that is the question,’ constitui uma das muitas metáforas que remetem à ideia de “ser ou não ser brasileiro.”
‘Macunaíma’ se alinha a outros livros que descrevem nosso passado para que não o rejeitemos e sim o compreendamos como um dos elementos de formação de nossa nacionalidade. Se Ana Maria Gonçalves mostra em ‘Um defeito de cor’ (livro aqui analisado há duas semanas) a porção negra da nossa brasilidade, Mário de Andrade faz o mesmo com ‘Macunaíma,’ descortinando o nosso selvagem lado indígena. Compreender e aceitar a importância da cultura, sem recusa ao que nos parece estranho, é nos habilitar para tempos melhores.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.
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