
O filme ‘Vida de Cabra’, disponibilizado pela Netflix desde julho, só agora alcançou notoriedade. Essa defasagem entre lançamento e sucesso se explica pelo fato de que originalmente não tinha sido legendado em árabe. Ao tomar a decisão de o fazer, no começo deste ano, o canal de streaming causou alvoroço no mundo islâmico, que ficou mal na fita. Por aí se deflagrou uma discussão global. O tema é escravidão no século XXI.
O enredo retrata a vida de Najeeb Muhammad, jovem simples do estado de Kerala, sudoeste indiano, que sonha ganhar dinheiro trabalhando fora de seu País e assim garantir o futuro do filho que vai nascer. Aliado ao irmão mais novo reúne a duras penas o necessário para o visto e as passagens para a Arábia Saudita. Parece o começo de um sonho. Mas quando ambos chegam ao aeroporto de Jeddah suas vidas sofrem reviravolta drástica. O ‘empregador’ retém de imediato os passaportes, separa os irmãos e força Najeeb a cuidar sozinho de um rebanho de cabras no deserto, sem nenhuma remuneração. Para tornar a situação mais desesperadora, o escravizado não fala árabe nem seu explorador entende malayalam.
Os sauditas criticaram ‘Vida de Cabra’ nas redes sociais, sobretudo no X. Lançaram ataques violentos à obra e aos seus criadores. Publicaram fake news sobre a produção. Tentaram desqualificá-la, taxando-a de inverídica- uma acusação que não se sustentou porque o filme é transposição para o cinema de biografia baseada em fatos. Najeeb contou o que lhe sucedera ao escritor Jaadujeevithan Benyamin e este levou os fatos para o livro que chegou em 2024 à 250° edição na Índia. A interpretação do ator Prithviraj Sukumaran impressionou o homem da vida real: ‘Senti como se estivesse vendo um reflexo de mim mesmo na maioria das cenas.’
Diante dessa história espantosa, talvez fosse oportuno lembrar o filósofo inglês Thomas Hobbes: ‘O homem é o lobo do homem.’ Leitura realista, poderia ser agregada a outras leituras possíveis, já que uma obra de arte oferece tantas linhas de interpretação quantos são os olhares que desperta em quem a lê. ‘Vida de Cabra’ é portanto filme que pode ser visto como narrativa de exploração de um ser humano por outro, relato de diferenças culturais intransponíveis, crítica à falência da comunicação entre humanos, retrato dos migrantes que decidem tentar a sorte em outro país, mas também como uma pequena aposta na compaixão e na amizade. Pode ainda ser analisado como a retomada de um mito muito antigo, que às vezes reaparece na literatura: a vida de Jó.
Dos mais populares personagens entre cristãos, judeus e muçulmanos, Jó se faz presente na tradição oral de povos do Oriente Médio há cinco mil anos. Descrito como homem bom, justo e paciente, foi despojado de tudo que possuía, de bens materiais a filhos, e ainda passou por grandes sofrimentos físicos. Afirma o texto bíblico que ele suportou tudo com resignação. Sua história patrocina expressão existente em várias línguas: ‘paciência de Jó’.
No filme, muitas referências perfilam Najeeb como um Jó dos nossos dias, que perde tudo o que tem e é submetido a martírios excruciantes. A solidão é aterradora. A angústia, intransponível. A fome, um tormento. O frio, insuportável. O sol, causticante. O espancamento, diário. Ele perde a noção de tempo, a condição de pensar, a vontade de falar. Ao fim de três anos de desumanização, acaba vocalizando o som das cabras e as palavras são substituídas por balidos. Não cessam aí os suplícios: na fuga é fustigado por sede, quedas, alucinações, tempestades de areia. Ao se salvar e ser encaminhado a um hospital está com feridas ‘da planta dos pés ao alto da cabeça’, conforme diz o médico que o socorre. É literalmente uma frase que em hebraico descreve Jó nas páginas do Velho Testamento.
As tribulações de Nageeb foram tremendas e é assustador pensar que ele representa apenas um caso pinçado no meio de milhares de outros na contemporaneidade repleta de desigualdades e injustiças. Ingênuos e sonhadores como ele, que caem em armadilhas criminosas, não estão apenas nos livros e nas telas. São encontrados em muitas regiões do planeta e nem sempre conseguem se salvar. Desaparecem em geral na voragem dos dias maus.
O indiano felizmente conseguiu voltar para casa quando tudo parecia inexoravelmente perdido. Mais um paralelo com o Jó bíblico, que após penar por muito tempo viu sua vida restaurada e prolongada, tendo outros filhos e netos, segundo o texto hebraico dos escribas. Nageeb igualmente encontrou seu escriba, o escritor que o ouviu, se compadeceu e levou a história para o livro, de onde ela saltou para a tela.
Há sempre uma esperança de que a arte, seja a literária, seja a cinematográfica, ou qualquer outra, possa mobilizar corações e levar mentes a uma reflexão sobre o Mal- que existe, faz parte da natureza humana e está sempre à espreita. É preciso permanecer atento a ele. Ignorá-lo, subestimá-lo ou desconsiderá-lo pode criar condições para que se estabeleça.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.
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