NOSSAS LETRAS

A Pequena Cápsula do Tempo

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 5 min

‘Podemos fazer grandes viagens, a Samarcanda, Bagdá, Wadi Rum, Agra; podemos subir as montanhas mais altas, deixar pegadas num deserto africano, dormir com leões e nadar com tubarões, fotografar auroras boreais, cavalos selvagens e vulcões zangados. Mas há viagens mais próximas, demasiado próximas, que têm mais grandiosidade do que as maiores e mais belas quedas-d’água ou picos nevados ou selvas luxuriantes ou imponentes túmulos de pedra. A grande viagem começa, por vezes, ao nosso lado, pode estar a um pequeno percurso de carro ou de autocarro ou a pé ou de bicicleta. Pode ser facilmente encontrada no interior do país.’

Este trecho pertence a um dos capítulos do livro “O vício dos livros’, do autor português Afonso Cruz, que discorre com encantamento, profundidade e toques de humor sobre o amor à literatura que motiva escritores e leitores ao redor do mundo. A metáfora do livro como viagem talvez seja a mais comum das que nos ocorrem quando pensamos na possibilidade de adentrarmos mundos até então desconhecidos cada vez que abrimos um novo livro e embarcamos em mais uma aventura. Se genuína, para valer a pena a viagem não precisa ser à terceira maior cidade do Uzbequistão, ao mais antigo centro do mundo islâmico, às ruínas da Jordânia ou à cidade indiana onde se ergue o Taj Mahal. Ela pode começar no interior do Brasil e contemplar uma semana de descobertas numespaço rural paulista que ainda guarda os moldes de uma atividade que se modificou com a mecanização mantendo o encanto das coisas que não perderam sua essência. Refiro-me à fazenda Santa Clara, cenário do livro ‘A Pequena Cápsula do Tempo’, do escritor Dôni Ferreira, que também é professor.

Destinado ao público infantojuvenil, nas suas 103páginas desfilam personagens bem definidos, em sua maioria adolescentes, que em oito capítulos, marcados no título pelos dias da semana, cumprem um roteiro de descobertas contando com a supervisão de uma mãe esclarecida, de idosos afetuosos e de outros adultos coadjuvantes que funcionam na narrativa como guardiões de um legado rural. A este, por circunstâncias bem elaboradas pelo criador do relato, cabe evidenciar aspectos culturais inéditos e assim provocar emoções nos jovens urbanos. Os garotos e garotas passeiam pelas matas; provam leite no curral; visitam feira de produtores; tomam banho de cachoeira; andam a cavalo; sovam pão na velha mesa da cozinha; empreendem romântica caminhada sob a luz da lua.

Mas o que move a narrativa é o encontro casual de um baú escondido debaixo de tábua solta em sala de antiga casa, bem dentro do paradigma dosromances de aventura. Com ênfase no suspense onarrador em terceira pessoa descreve o momento: “Assim, pouco a pouco, a borda enferrujada do pequeno baú começou a aparecer. O coração de todos batia mais rápido, e um sentimento de realização e descoberta tomou conta do grupo. Finalmente, o pequeno baú foi retirado da terra, coberto de poeira e marcas do tempo. Todos se reuniram ao redor dele, aguardando o momento de abri-lo, prontos pra desvendar o grande mistério.”

Todos nós, leitores adultos, lendo ‘A Pequena Cápsula do Tempo’ nos recordamos de ter tido experiência similar à dos personagens, ou seja, de expectativa, pois frente ao encontro de algo inusitado é natural lançar-se à busca que responda à curiosidade. No caso, por artifício do autor, a indagação que se coloca é sobre os donos dos objetos, guardados ali há muitas décadas. A descrição de cada um deles, à medida que são desembalados do papel de seda, desvela o ficcionista cioso da linguagem e seu poder deestimular e fermentar a imaginação. Surgem devagar aos olhos, depois de antigo relógio de bolso, e antes de uma xícara e da miniatura em barro de uma matraca, ‘uma bússola antiga, com intrincada rosa dos ventos gravada em detalhes dourados e um pequeno diário com capa de couro meio desfeita pelo tempo, com o nome Jerônimo grafado na primeira página’.

O enredo desenrola-se sob esses dois eixos narrativos: os deslocamentos dos personagens pelo espaço físico da fazenda e seus arredores no presente e a movimentação para descobrir os proprietários das relíquias, o que acaba por reconstituir o passado. Entre os dois tempos, opresente que se vive e o passado que se resgata, o autor abre espaço, pela voz de Cláudia (aparentemente alter ego do autor), para diversas reflexões à medida que os hóspedes vão deixando transparecer suas precariedades no âmbito das emoções e dos sentimentos. Os jovens são sutilmente convidados a reconhecer suas próprias fraquezas evidenciadas ao longo da viagem e a lidar com elas.

A história chega ao fim com a identidade dos donos das relíquias revelada e com as situações,onde a autoajuda se revela por meio de metáforas,bem construídas e elaboradas.  Diz Cláudia aproveitando a oportunidade de uma conversa sobre as ondas do mar: ‘as emoções são exatamente assim. Às vezes, elas vêm suaves, quase imperceptíveis. Mas de vez em quando chegam fortes, imensas, e se não estivermos atentos, elas nos jogam longe, como as ondas fazem no mar. A grande questão não é evitar as ondas, mas aprender a surfar nelas.’ Em outraocasião, não deixando escapar um gancho, alerta: ‘(...) a ansiedade é uma emoção, assim como a alegria ou a tristeza. E quando ela aparece em excesso, pode nos atrapalhar bastante. Às vezes, quando sentimos muita ansiedade, é importante procurar ajuda de especialista, porque essa emoção, quando ultrapassa um certo limite, começa a soterrar nossos sentimentos. Ela nos impede de pensar com clareza e de agir de forma equilibrada.’ Nesse diapasão, um adendo sob título ‘Cartilha da Cláudia’ fecha o relato e pode ser um contributo para leitores da faixa  etária ao qual o livro se destina.

Escrever para crianças e adolescentes é tarefa exigente e delicada. Pede empatia, imaginação e interesse. Dôni Ferreira faz isso muito bem: é perceptível seu gosto e cuidado pela escrita e a sensibilidade com que cria personagens e situações. O tema da viagem aqui retomado mostra originalidade na medida em que junto a ele o escritor consegue inserir, de forma verossímil e bem ajustada, considerações que podem calar nos corações e mentes de seus jovens leitores. Que estes saiam da leitura melhores do que entraram, como voltaram mais expandidos à cidade os personagens de ‘A Pequena Cápsula do Tempo’.

PS- O leitor interessado poderá baixar gratuitamente o livro digital no site da Ribeirão Gráfica Editora: www.ribeiraograficaeditora.com.br

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.

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Comentários

1 Comentários

  • José Donizeti Vaz Ferreira 01/03/2025
    Sinto-me imensamente lisonjeado pela resenha e pelas palavras da jornalista e escritora - membro da Academia Francana de Letras - Sônia Machiavelli. Muito me honram os comentários elogiosos acerca do livro A Pequena Cápsula do Tempo. Espero que os leitores baixem o ebook e apreciem a aventura. Grato. Dôni Ferreira.