NOSSAS LETRAS

Um livro necessário

É bem provável que algum branco que leia estas linhas pense consigo: “Eu não sou racista”. Estará se enganando como milhões de outros. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 15/10/2022 | Tempo de leitura: 6 min
Especial para o GCN

Conhecia algumas premissas do pensamento de Djamila Ribeiro através de seus textos publicados em revistas como a Piauí e jornais como a Folha de São Paulo. Também por sua presença nas redes sociais. Queria já ter lido “O que é o lugar de fala?” (2017) e “Quem tem medo do feminismo negro?” (2018), suas duas primeiras obras, quando o acaso me colocou nas mãos a terceira, de 2019, cujo título é “Pequeno Manual Antirracista.” Trata-se de um livro de 10x16cm, 136 páginas, capa mole, confortável para segurar, editado pela Cia das Letras. Pequeno no formato, imenso nas considerações sobre como entender o racismo.

Djamila Ribeiro nasceu em Santos, tem 42 anos, é mestra em filosofia política pela Unicamp. Seus livros também foram publicados na França e atualmente são preparadas edições em espanhol e italiano. Ela atua no grupo Promotoras Legais Populares, que inspira lideranças femininas nas periferias da cidade de São Paulo. Participa ainda da formação de juízas e juízes visando a mudar o olhar judicial sobre a população negra. Como conferencista esteve em oito capitais europeias, quatro cidades norte-americanas, cinco africanas e dezenas de brasileiras nos últimos cinco anos.

“Pessoas brancas devem se responsabilizar criticamente pelo sistema de opressão que as privilegia historicamente, produzindo desigualdades; e pessoas negras podem se conscientizar dos processos históricos para não reproduzi-los. Este livro é uma pequena contribuição para estimular o autoconhecimento e a construção de práticas antirracistas.” Assim a autora encerra o conjunto de textos de onze capítulos que seguem uma ordem à qual eu chamaria de pedagógica. São eles: Informe-se sobre o racismo, Enxergue a negritude, Reconheça os privilégios da branquitude, Perceba o racismo internacionalizado em você, Apoie políticas educacionais afirmativas, Transforme seu ambiente de trabalho, Leia autores negros, Questione a cultura que você consome, Conheça desejos e afetos, Combata a violência racial, Sejamos todos antirracistas. Este, pelo título, espírito e proposta lembra muito Chimamanda Ngozi Adiche, outra autora negra e combativa, de origem nigeriana e escrita anglófona. 

É bem provável que algum branco que leia estas linhas pense consigo: “Eu não sou racista”. Estará se enganando como milhões de outros. Pois é impossível não ser racista num país de passado escravocrata, de séculos de abusos ininterruptos. São para estes leitores especialmente, os que negam seu racismo, as considerações da autora a cada página. É com dados objetivos e pessoais, além de preciosa bibliografia, que ela põe o dedo na ferida e explica o que é “racismo estrutural”, tema que permeia grande parte da obra. Nós, brancos brasileiros, ainda somos racistas e ela nos mostra muitos exemplos que nos traduzem o quanto ainda teremos de evoluir rumo a uma verdadeira democracia racial, por enquanto apenas um mito que tenta criar imagem positiva da sociedade e não coincide com a realidade.

Com estilo calcado na escolha de vocábulos simples, privilegiando períodos curtos, avesso à adjetivação, seria previsível imaginar um discurso apenas objetivo e fluido. Entretanto, ao trazer para alguns capítulos sua experiência pessoal, e a de autoras negras feministas como ela, a filósofa entra em contato com a subjetividade do leitor, fazendo-o, se não sentir compaixão, ao menos entender suas dores:

“Desde cedo, pessoas negras são levadas a refletir sobre sua condição racial. O início da vida escolar foi para mim o divisor de águas: por volta dos seis anos entendi que ser negra era um problema para a sociedade. Até então, no convívio familiar, com meus pais e irmãos, eu não era questionada dessa forma, me sentia amada e não via nenhum problema comigo: tudo era normal. ‘Neguinha do cabelo duro’ e ‘neguinha feia’ foram alguns dos xingamentos que comecei a escutar. Ser a diferente – quer dizer, não branca- passou a ser apontado como um defeito. Comecei a ter questões de autoestima, fiquei mais introspectiva e cabisbaixa. Fui forçada a entender o que era racismo e a querer me adaptar para passar despercebida. Como diz a pesquisadora Joice Berth, “não me descobri negra, fui acusada de sê-lo”. A frase é genuína, forte, dura e vai se tornando icônica.

No capítulo sobre branquitude, neologismo criado para se contrapor à negritude, a autora traz à luz dados inquestionáveis. O Brasil é a maior nação negra fora da África, 56% da população é negra. Então, se negras e negros são maioria, por que a ausência deles nos espaços de poder?  Djamila nos responde, fazendo-nos ver que tal constatação, a ser considerada chocante, está totalmente normalizada na sociedade brasileira.

Para que o preconceito comece a ser banido, é preciso que “uma pessoa branca pense seu lugar de modo que entenda os privilégios que acompanham a sua cor. Isso é importante para que privilégios não sejam naturalizados ou considerados apenas esforço próprio. Perceber-se é algo transformador. É o que permite situar nossos privilégios e nossas responsabilidades diante de injustiças contra grupos sociais vulneráveis. Pessoas brancas, por exemplo, devem questionar por que em um restaurante, muitas vezes, as únicas pessoas negras presentes estão servindo mesas, ou (em qualquer outro ambiente) se já foram consideradas suspeitas pela polícia por causa de sua cor. Trata-se de refutar a ideia de um sujeito universal- a branquitude também é um traço identitário, porém marcado por privilégios construídos a partir da opressão de outros grupos. Devemos lembrar que este não é um debate individual, mas estrutural: a posição social do privilégio vem marcada pela violência, mesmo que determinado sujeito não seja deliberadamente violento.” Ou seja, o racismo não é apenas um ato voluntário individual mas poderoso sistema de opressão que nega direitos.

Quando leio um livro que me envolve, tenho por hábito ir marcando as páginas com post-it, a fim de voltar a elas para reflexões mais aprofundadas. Aconteceu isso com o “Pequeno Manual Antirracista”, e de tal forma que ao chegar ao fim vi que havia marcado quase todas as páginas. Djamila Ribeiro nos convida a pensar o tempo todo e nos oferece oportunidade de fazê-lo a partir de suas ideais e de sua atitude generosa. Seu tom não é o de guerra, o que muito se vê em escritores negros, em geral nos poetas. Ela nuança sua indignação de esperança, faz uma aposta no conhecimento que pode libertar os seres da ignorância que não permite avanços individuais e coletivos. 

O racismo, entre outras coisas, é atitude desumana, cruel, anticivilizatória, que as leis brasileiras estão enfim começando a punir. Mas só a aplicação da lei não basta para mudar o cenário.  Precisamos conhecer o racismo em sua gênese histórica e reconhecê-lo em nós, brancos, para só então combatê-lo e nos modificarmos como nação. Ignorá-lo é o pior caminho. O “Pequeno Manual Antirracista” pode ser de grande valia nesse processo. Ele é um livro necessário para quem deseja um Brasil mais justo e equânime, ainda que a longo prazo. Talvez o vejam assim os netos de nossos netos. Talvez.

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