
Há encontros marcados em alguma dimensão que desconhecemos. Parece que acontecem para nos dar um recado, mostrar uma luz, descortinar realidades impensáveis. Muitos anos atrás, conversando casualmente com saudoso leitor sobre os poemas de “Mensagem”, escritos por Fernando Pessoa, de repente ele me perguntou: “Já leu Madame Blavatsky”?
Não, eu não a conhecia, pela primeira vez ouvia seu nome. Meu amigo discorreu rapidamente a respeito, recomendou-me que a lesse para depois trocarmos ideias. Não chegamos a fazê-lo. Eu mudei de casa, ele passou a sofrer de doença incapacitante, e quando o via de longe, cada vez mais encurvado, meu coração apertava. Na última vez, ele estava com impressos nas mãos; eram alguns excertos do Bhagavad Gita, o mais célebre texto indiano sobre auto-conhecimento. Parecia absolutamente resignado com sua fragilidade. “É karma”, me disse. Depois perguntou se eu tinha afinal lido Madame Blavatsky. “Ainda não”, respondi .
Na semana passada, ao receber correspondência da Edipro, resgatei imagens bem nítidas daqueles dois momentos. Pelo selo Mantra, a editora está lançando “A Voz do Silêncio”,de Helena Bravatsky, traduzida por Pessoa. Então entendi porque o nome da prosadora russa surgira naquela conversa quando o assunto era o poeta português. Wagner , este o nome da pessoa inesquecível , tinha conhecimento da tradução, embora com certeza tivesse lido o original, competente professor de inglês que era.
Para quem se pergunta sobre os temas dessa escritora e filósofa posso responder que se pautam pela busca da verdade, de aperfeiçoamento, bem-estar, existência mais equilibrada, e- isso é importante- de autoconhecimento como ferramenta de compaixão. Seus principais conceitos dialogam, de diversas maneiras, com os princípios contidos nas literaturas espiritualistas orientais, especialmente as originárias do sânscrito.
“A Voz do Silêncio” foi publicado em 1889. Fernando Pessoa o traduziu em 1916, impressionado pelo conteúdo e pela qualidade da linguagem poética. Tomado por intensa emoção, escreveu ao grande amigo Mário de Sá-Carneiro relatando sua “necessidade psíquica absoluta” de revelar a descoberta recente dos escritos de Helena Petrova Blavatsky. Nascida numa cidade russa, hoje parte da Ucrânia, pertencia a uma família conhecida, cujo chefe era comandante militar do Império e por isso se mudava muito. Assim, a jovem aprendeu inglês, francês, piano, dança e a diferença entre culturas. Casou-se aos dezoito anos, mas logo deixou o marido e começou a viajar pelo mundo. Percorreu a Europa, as Américas e a Ásia. Estudou a religião do Egito Antigo e a cabala judaica. Foi parar no Tibete, onde recebeu de monges treinamento mental de base budista. Sua obra influenciou cientistas como Einstein e Thomas Edison; escritores como James Joyce, Yeats, Fernando Pessoa, T. S. Elliot; artistas como Mondrian, Paul Klee, Gauguin; músicos como Mahler, Sibelius; além de inúmeros pensadores, um deles Ghandi. Ajudou a moldar o viés religioso dos artistas hippies, nos anos 1960 e 1970.
Considerando que vivemos um tempo onde fundamentalismos, anti cientificismo, descrédito da representação política e ofensas à natureza atentam contra nossa dignidade de indivíduos e cidadãos, resgatar os pensamentos de Blavatsky é uma forma de resistir com nossas verdades. Sobretudo na acepção de que o universo é dirigido de dentro para fora, pois nenhuma mudança exterior pode ter lugar no corpo externo se não for provocada por um impulso interno. Conciliadora, antirracista, defensora de valores universais, entre eles a liberdade de crença e expressão, Bravadsky está de volta ao ruidoso século XXI, convidando o leitor a penetrar no reino do Invisível:
“Antes que a Alma possa ouvir, o homem tem de se tornar surdo aos rugidos como aos segredos, aos gritos dos elefantes em fúria como ao sussurro prateado do pirilampo de ouro. Antes que a Alma possa compreender e recordar, ela deve primeiro unir-se ao Falador Silencioso, como a forma, que é dada ao barro, se uniu primeiro ao espírito do escultor”.
Já pedi meu exemplar pela Internet. Não poderei comentá-lo com Wagner, mas tenho certeza de que a hora de o ler enfim chegou.
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