Nos dias de folia valia tudo, nada tinha limites ou responsabilidades. O povo tomava um "porre de felicidade" e aproveitava para vingar-se da burguesia. O fluxo de opressão e humilhação se invertia durante o tríduo. O arquiteto Grandjean de Montigny, contratado por D. Pedro II para remodelar o Rio de Janeiro, era odiado pelo povo. Desalojou os pobres dos seus barracos para "arejar" a cidade e não comprometer o estilo neoclássico que estava implantando. Nem ao menos se preocupava em indenizar ou conseguir novas moradias aos desalojados. "O povo que se dane. A estética é essencial".
Quando quis ver o Entrudo de perto e saiu às ruas misturando-se ao populacho levou um balde d´água na cabeça que o deixou encharcado. O ilustre, duas semanas depois, aos 74 anos, morria de pneumonia. Os pobres estavam vingados.
No Carnaval, o povo deixa de ser objeto para se tornar sujeito da própria arte. Os brancos aplaudem sentados nas arquibancadas os protagonistas negros e mulatos. Intelectuais prestam vassalagem aos compositores de samba-enredo. Atualmente, branco rico e turista estrangeiro que quiser desfilar tem que pagar, e caro, por um lugar na passarela.
Em Bauru, quiseram oficializar o Carnaval e quase o mataram. A Prefeitura subvenciona as escolas. Houve um tempo em que cada grupamento tinha seu patrono vereador ou pretendente a cargo eletivo. Fizeram até um Sambódromo ("o primeiro do interior", segundo o proclamado), hoje erodido. Para cumprir o calendário, o governo municipal transferiu o desfile para a av. Jorge Zaiden, sob críticas. Torço para que consigam reanimar a festa. Tivemos grandes carnavalescos como o Horácio e o Paulinho Keller. Dos "sonhos sonhados" nasciam carros alegórico cada vez mais ricos e esteticamente planejados com engenhos de mobilidade. Apurações na Câmara Municipal eram aguardadas com ansiedade. Muitos protestos, logo abafados pelo ruído dos vencedores. E mais carnaval para festejar o resultado. Agora, "tudo acabado, e nada mais..." Sucessivos prefeitos quiseram ajudar, transformar a manifestação numa coisa "distinta", colorida e televisiva. Acabaram foi por inibir a capacidade de organização popular espontânea. Nos grandes centros as escolas aprenderam a sobreviver sem o Estado.
O Carnaval bauruense caiu do galho, deu dois suspiros, mas ainda não morreu. Quase a cidade se transforma na Capital do Retiro Espiritual. Há uns 15 anos, chegamos a ter 40 mil pessoas em alojamentos cantando em louvor a Deus. Amém.
Desde menino ouço dizer que Carnaval bom era o de antigamente. Ainda peguei a proibição do lança-perfume, éter comprimido em bisnagas de alumínio ou vidro. Quem tinha uma Rodouro metálico era considerado rico. Aspirar o líquido volátil e perfumado provocava um zumbido nos ouvidos, uma sensação de torpor. Para os mais tímidos o lança-perfume servia para libertá-los das amarras da introspecção e enchê-los de coragem para finalmente abordar a garota paquerada durante o ano todo. Injetar aquele líquido gelado nas costas e nas pernas das garotas que se arrepiavam, mas sentiam-se homenageadas, era o ápice do charme. As mulheres se tornavam proparoxítonas: sensualíssimas, lindíssimas. Tempos de suspiros e gemidos.
Em 1961 o presidente Jânio Quadros, no seu curto período de governo antes de renunciar teve tempo de proibir o lança-perfume e concursos de "miss" com maiô. Foi a sua contribuição à pátria antes e abandoná-la ao caos que deu causa à ditadura.
Bem, "chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor". Assim começa o samba Brasil Pandeiro, de Assis Valente (1940), para terminar incentivando o Brasil a esquentar seus pandeiros, iluminar seus terreiros "que nós queremos sambar". Quem não samba, senta no sofá para admirar na tevê o desfile de cores, peitos e bundas.
Se for dirigir, não beba. Se beber, não urine na rua. Divirta-se.