No farol, à espera do verde, a fome dentro do carro olha a fome de fora, na sarjeta. Uma mulher raquítica, suja, roupas esfiapadas, duas crianças e um vira-lata, dormindo no chão. Um cartaz de papelão redundava dizendo o que não era preciso: "Estou com fome". A fome de dentro não gostou de ver a fome de fora. Sob a luz vermelha semafórica, encararam-se num redemoinho de sentimentos difusos e confusos de curiosidade, ódio, inveja, tristeza, asco...
Bichos encurralados se estranhando olho no olho. A mulher de dentro sentia-se culpada, doía-lhe a alma ver gente assim molambenta, pior crianças jogadas na rua, no frio, na chuva, ao deus dará. Por quê? Por que Deus está nas igrejas, nos cultos, nas bocas e nunca no coração das pessoas?
Por que ninguém dá um jeito nisso? Impaciente, ergueu os olhos e o vermelho teimosamente ainda se mantinha. Havia entre essas duas mulheres a mesma fome, que irrita, tortura e não deixa a cabeça pensar. Eram fomes iguais, mas eram diferentes. A fome de dentro comia o quanto podia, mas logo corria pra vomitar. A outra, a de fora, aquela que pedia na sarjeta, como não comia, não tinha sequer o que vomitar Aliás, nos últimos tempos, a fome de dentro vinha gastando muito para passar fome: nutricionista, endócrino, terapeuta, personal, spas. A conta na ponta do lápis doía, mais ainda crescia quando contabilizava camadas de ácido hialurônico, injeções de toxina botulínica, peeling químico..
Fazer o quê?
Além do corpo gordo, tinha a cara feia pra arrumar. A gente é assim, nunca está contente com a cara e com o corpo que tem, é coisa que vem de fora e mexe por dentro. Vermelho ainda? Que saco! Nessa eternidade, os olhos de dentro e os olhos de fora continuavam se encarando.
Momento tenso, ameaçador. Machucada e humilhada, a fome de dentro do carro tomou urgente decisão: amanhã, mudo o trajeto.