Um dos observadores mais atentos da cultura brasileira, Câmara Cascudo ensinava que provar o sal da casa alheia é a melhor maneira de fazer do anfitrião ocasional um grande amigo. A camaradagem à mesa faz parte de um ritual político, anterior até mesmo à existência do voto.
A antropóloga Karina Kushnir, autora de "Como se fazem eleições no Brasil", mostra como no nosso país comer com os eleitores tem mais força do que qualquer discurso político. "Comer junto" na política não deve ser confundido como um método para obtenção de votos. "É mais que isso. Trata-se de um conjunto de procedimentos que tece a rede de influência do candidato", esclarece a pesquisadora que acompanhou esses rituais políticos durante dez anos.
Ainda outro dia ouvi a queixa de um candidato que já não aguenta mais tomar café em caneca de alumínio amassada e comer bolo de fubá. Mal sabe ele que dividir o prato é símbolo universal que cria vínculos entre pares e díspares. Dante narra no "Purgatório" que, em Florença, o assassino que tomasse sopa e vinho sobre o túmulo do morto não podia ser vítima de vingança da família do assassinado, tamanha a carga dessa ligação simbólica.
No tempo da ditadura, tivemos em Bauru um candidato de oposição (MDB) chamado Toninho Fortunato. Com recursos limitados, fazia campanha só na base do corpo-a-corpo, distribuindo santinhos casa-por-casa. Na mais longínqua periferia todos os esperavam com aquela certeza do "ele virá". Um dia o morador de um barraco ofereceu-lhe bunda de içá com farofa, como se fosse a maior iguaria do mundo. Chico Rolha, assessor de todas as horas, adiantou-se e pegou a louça desbeiçada dizendo que era o seu "prato preferido". Comeu tudo e repetiu até esvaziar a travessa. Tamanho apetite mais os rasgados elogios à arte do cozinheiro deixou o dono da casa orgulhoso. Mais tarde Chico, longe dali, explicou aos companheiros entre engulhos, como encontrara coragem para enfrentar o grude. "Se eu não comesse ia sobrar para o professor". "Professor" era o tratamento que ele, respeitosamente, reservava ao Toninho, na verdade um vendedor de enciclopédias. Foi a mais comovente demonstração de fidelidade política de que tive notícia.
A estratégia de conquistar eleitores de Arlindo Figueiredo (Arena) consistia em levar a própria comida aos bate-papos nos bairros. Como bom lusitano, mandava comprar sardinhas. A churrasqueira portátil e as raquetes de assar na brasa garantiam a festa. Maior sucesso. Terminada a campanha à Prefeitura o assessor de Arlindo teve que vender o carro como sucata porque não havia quem tirasse o cheiro de peixe impregnado nos bancos e na forração.
Na campanha presidencial de 1994, Fernando Henrique Cardoso lançou-se em uma romaria eleitoral pelo Nordeste e, sem saber, comeu a famosa buchada de bode - preparo feito com sangue, fígado e tripas involucradas no estômago do caprino. Disseram a FHC que era um prato francês, tradicional na Normandia - "Tripes à la mode de Caen". Devorada com aparente apetite em Petrolina, entrou para o folclore político nacional com visto de permanência mais extenso que passeios de jegue e outras estripulias com o eleitorado local.
Quando se trata de uma eleição onde decide o povo que tem TV, mas não tem geladeira, e ainda assim oferece a comida que serve aos filhos para receber seu candidato, a solução é, em poucas palavras: comam, candidatos, em público, com o público e com gosto. O inverso também pode ocorrer, na ficção e na realidade, quando os poderosos é que oferecem banquetes aos humildes.
Muito antes da primeira urna aportar em solo nacional, as celebrações de poder já tinham caráter de espetáculo. O baile da Ilha Fiscal, de 1889, é possivelmente o mais almodovariano deles.
A última festa do Império consumiu 500 perus, 18 pavões, 64 faisões, 800 quilos de camarões, 1.300 frangos, 12mil sorvetes, 10 mil litros de cerveja e 258 caixas de champagne. No dia seguinte foram encontrados perdidos na ilha 16 chapéus, 17 ligas, 13 lenços de seda, 9 de linho, 15 de cambraia e 8 corpetes. Seis dias depois, caía o Império.
O autor é jornalista.
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